Depardon, os anos reveladores – por Pio Figueiroa

Fotografia

17.12.12

A convite do Blog do IMS, Pio Figueiroa, da Cia de Foto, comenta a sua fotografia favorita do livro Magnum – Contatos.

 

Robert Capa se voltou ao mundo da fotografia pós-Segunda Guerra com o estímulo sintomático dos movimentos que iriam reestruturar a vida do século moderno. Entre as palavras de ordem, incentivara um engajamento fotográfico humanitário mais forte, aparentemente mais tangível do que o surrealismo do entre-guerras. A Magnum surge, em 1947, com esse recado de Capa: “Não se mantenha como um fotógrafo surrealista, seja um fotojornalista, senão você cairá no maneirismo. Mantenha o surrealismo apenas em seu (pequeno) coração. Não se ?inquiete’, mova-se!”

Aqui na Cia de Foto, desconfiados de que a agência Magnum perdeu parte daquele idealismo inicial, propomos uma inversão ao manifesto inaugural de Capa para que então voltemos a ser bem mais surrealistas! É sim necessário termos um fotojornalismo em nossos pequenos corações, mas, inquietos, devemos nos voltar para o surrealismo de outrora.

Quando Capa recomenda: “mova-se, deixe o surrealismo só no coração…”,  ele está, nos parece, defendendo um tipo de fotojornalismo que deve se preocupar com a “missão” de se aproximar de uma cena, um certo elogio à objetividade que aos olhos de hoje soa como uma herança condicionada de tratar uma foto como um objeto de um flagrante cujas informações, que dali se expressam, se condicionam por um regime que pressupõe certo distanciamento da cena.

É preciso criticarmos o significado da famosa máxima “se sua foto não esta boa o suficiente, você não está perto o suficiente”, pois, sem tal crítica, corremos o risco de ficarmos ainda mais distantes do efeito político, polissêmico, que carrega uma fotografia. A situação costumava se pautar pelo heroísmo moderno, pelo “super homem” que empunhava uma máquina implacável e, com isso, iria denunciar as violentas assimetrias entre os homens. Mas a potência verdadeira de uma fotografia consiste, muito mais, em apresentar que denunciar; a mais importante característica da fotografia se revela à medida que ela engendra possibilidades e conceitos. Dessa forma, muito ao contrário de registrar automaticamente impressões do mundo vivido, a fotografia se orienta pela criação – “transforma conceitos em cenas” (Vilém Flusser). Filosófica, a fotografia está fundada numa relação, e dessa relação se desdobram infinitas possibilidades de se pensar e perceber. Cada cena construída é como uma encruzilhada de olhares e significados cujo tecido invisível amarra o que se vê com o que é visto.

“Estar perto suficiente” não nos garante uma boa foto se apenas mobilizarmos aquele personagem heroico armado com a sua Laica que carregava consigo o modelo da cena que queria ver e tentava, assim, atingir a realidade moldando-a à sua concepção de mundo anteriormente mirado. Pouco vale, aos olhos de hoje, o quanto você se aproxima, mas como se aproxima; de que forma essa distância se constitui. A cena não está lá para ser morta, acertada, como um troféu, mas para se misturar a gente, para agir conjuntamente com o próprio fotógrafo para o sentido que irá surgir. Não é mais como um caçador de cenas, e sim como alguém que percebe fazer parte dela, vivenciando-a, que a máxima se atualiza uma vez que a determinação da distância deixa de ser física para se tornar fotográfica.

Como paródia ao artigo “O dia da caça”, de Rubens Rodrigues Torres Filho: “Estamos em um tempo que torna possível a impertinência da questão: – Por que fotografo? Se pensarmos, então, que a pergunta pelo ?por quê?’ é a pergunta filosófica por excelência, a arma com que o fotógrafo sai à caça de suas imagens, vê-la voltada, agora, contra o próprio fotógrafo, leva a pensar que chegamos, afinal, ao dia da caça, em que a figura clássica do fotógrafo perde seus direitos predatórios, e esse caçador passa a ser caçado. É o dia da caça, o dia da fotografia”.

Uma foto “isolada” da Magnum, normalmente, nos provoca o efeito de outrora, do flagrante estanque da imagem pelo mérito idiossincrático de um fotógrafo personagem histórico. Mas quando se olha os contatos, quando não se nega o processo, ou seja, o surgimento da cena, o que se revela é a mais viva possibilidade de uma história. Os contatos fazem surgir do fotojornalista toda a complexidade de gestos e mediações que tal cena envolveu e com isso questionam o papel do fotógrafo, do assunto que se pauta e a postura de quem agora tem em mãos uma história para ver. Olhar os contatos dos fotógrafos da Magnum, sugerindo que eles coloquem de volta o fotojornalismo no coração, é uma forma provocativa de repensamos o valor dessa bandeira que estampava a conquista do inacessível, motivando estes fotógrafos a ressurgirem na história como corajosos surrealistas.

Para ilustrarmos esse comentário sobre o livro Magnum – Contatos, recorremos a Raymond Depardon, que fotografa um caminhão no deserto da fronteira do Chade com a Líbia, página 238. A foto sugere uma escultura e dá sentido às formas de um aglomerado impossível de gente e bagagens, em um encontro da travessia. Depardon nos fala que “examinar uma folha de contatos é como reconstruir a trajetória no passado. É um belo momento. Talvez até mais bonito – mais prazeroso – do que tirar fotografias”.

Fica o desejo de percebermos uma Magnum crucial à fotografia moderna europeia, impregnada pelos fotógrafos que mantiveram a essência surrealista em suas composições de mundo.

* Pio Figueiroa é integrante do coletivo Cia de Foto

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