Diário da Tarde: o volume involuntário (I)

Literatura

14.11.13

Em 18 de novembro, uma segunda-feira, o IMS lança às 19h30, no auditório da Livraria da Travessa Leblon, no Rio de Janeiro, o livro Diário da tarde, do cronista e poeta mineiro Paulo Mendes Campos. No lançamento, será realizada uma conversa aberta ao público entre os cronistas Renato Terra, da revista oiauí, e Xico Sá, da Folha de S. Paulo.

“Um painel da barafunda das minhas curiosidades, que não foi projetado, mas resultou dessas atenções múltiplas que surgiram sempre na minha vida e estão refletidas neste volume involuntário”. Foi o que disse Paulo Mendes Campos em entrevista a Edilberto Coutinho publicada no jornal O Globo de 3 de fevereiro de 1982, pouco tempo depois, portanto, do lançamento do Diário da Tarde em 1981.

Nesse ano ele desfrutava do sossego da Gruta do Jacob, seu sítio perto de Petrópolis. Tinha se aposentado como técnico de comunicação social pela Empresa Brasileira de Notícias, antiga Agência Nacional e hoje Agência Brasil, e com isso conquistava o direito de se dedicar às flores e árvores frutíferas na região serrana do Rio de Janeiro. Sobrava tempo ainda para fazer suas leituras, sem pressa, mas de tão impregnado de jornal não resistiu à tentação de dividir o tempo para criar um que fosse seu. Certamente terá se divertido um bocado montando esse imaginário periódico que, aconselha ele na apresentação, “pode ser lido num lindo dia de chuva, à falta duma boa pilha de revistas antigas”.

Há quem pense que Paulo Mendes Campos planejou e escreveu  os textos das oito colunas que compõem cada uma das vinte edições do DT. Engano. O que ele fez foi aproveitar a folga de aposentado, como já se disse aqui, e se divertir voltando aos textos publicados na imprensa e aos seus cadernos de notas para compor o Diário, publicado originalmente pela extinta editora paulista Massao Ohno em parceria com a Civilização Brasileira e agora reeditado pelo Instituto Moreira Salles. Desta vez em formato de tabloide. Do ponto de vista gráfico, quem sabe, mais próximo ao sonhado pelo autor.

É possível que não pensasse em exibir seu perfil em cores tão claras nessa vintena de edições, tal a ideia de despretensão que deixa no leitor. Mas o resultado é que, ao final do livro, tem-se o retrato psicológico e intelectual de Paulo Mendes Campos. O Diário, saboroso na sua variedade e rico no aprofundamento de temas, além de múltiplo em assuntos, como todo jornal, vai do coloquial ao erudito em segundos. A grande diferença é que essa variação não se deve a editorias especializadas ou a jornalistas com formação particular. Vem de um único redator e um só editor, que conjugou leveza e erudição com graça e excepcional finura de inteligência.

Não fosse ele o estudioso organizado que fez anotações com letrinha miúda, seguindo método muito seu, em 55 cadernos, todos sob a guarda do Instituto Moreira Salles, não teríamos as oito seções muito bem orquestradas do DT.

As três primeiras seções

Digamos que “Artigo indefinido”, “Poeta do dia” e “O gol é necessário”, as três primeiras seções, são o estofo do jornal, por meio do qual ressalta o conhecimento crítico e literário do autor, senhor de uma prosa dinâmica e instigante. Seguem-se, então, cinco seções mais leves, às vezes fervilhantes, nessa ordem: “Bar do Ponto” “Pipiripau”, “Grafite”, “Suplemento infantil” e “Coriscos”.  Serão tratadas no próximo post.

Em nenhuma das vinte edições do jornal, no entanto, Paulo Mendes Campos foi intransigente com relação ao esquema idealizado. Desse modo, nem mesmo em “Artigo indefinido”, a coluna de abertura, que de modo geral se compõe de um ensaio literário, o autor/editor hesitou em incluir texto como o da crônica “Amigos implacáveis”, que foge à intenção literária original. Ou “Ele e Ela”, diálogo que constrói com frases de Emílio Moura e Cecília Meireles, ou ainda “Uma túnica de várias cores”, coletânea de frases de sua autoria e traduções de outras, de autores estrangeiros. E mesmo em texto essencialmente crítico, como o que escreveu sobre a Odisseia para a mesma seção, com o título de “Cinema homérico”, não abriu ele mão da liberdade: arrematou este ensaio sobre o clássico grego com uma experiência pessoal e afetiva. Conta ele que à certa altura da vida

costumava ler uma edição juvenil da Odisseia para duas crianças que beiravam os dez anos de idade. Era depois do jantar, antes do sono infantil. Nunca cheguei ao final de um capítulo: a menina caía em prantos, pedindo que eu parasse; o menino arregalava os olhos, pedindo que eu continuasse. No outro dia, como Penélope, retomávamos o fio, e era a mesma coisa, para a maior glória de Homero.

Os meninos a que ele se refere são Daniel e Gabriela, seus filhos, para quem lia toda noite, antes de dormirem. Conta Joan Mendes Campos, viúva de Paulo, que Gabriela, entre curiosa e impressionada, ficava emocionadíssima e chorava, aflita, com as desventuras de Ulisses. Não aguentava ouvir o desenrolar completo dos episódios, enquanto Daniel, torcendo pelo herói de Homero acima de tudo, nada queria perder da história.

Muitos desses ensaios foram reunidos no livro Artigo indefinido, título sob o qual Flávio Pinheiro coletou os textos de Paulo Mendes Campos no gênero, todos publicados anteriormente numa coluna de Manchete intitulada “As obras-primas que poucos leram”, nos primeiros anos da década de 1970, da qual participaram também outros autores.

Não foi apenas em “Cinema homérico” que Paulo Mendes Campos incluiu um pouco de sua biografia no livro. Jogador de futebol na infância, foi obrigado a parar quando machucou seriamente o joelho. Aos 30 anos de idade, e sem tratamento, ficou curado. Fundou então um time de veteranos, o Trinta por Trinta, que jogava num campo de futebol, no alto da rua Marquês de São Vicente, já perto da Rocinha. Levava pela mão Daniel, o filho. Batia bola com o técnico e jornalista Armando Nogueira, o cineasta Luiz Carlos Barreto (com os filhos, Bruno e Fábio), João Araújo, pai de Cazuza, entre outros. Lá iam, de preferência, os homens com seus meninos; as mulheres tomavam outro rumo.

Vê-se que não foi sem entusiasmo que Paulo idealizou a segunda seção do Diário, a que deu o título de “O gol é necessário”. Reuniu aí muitas de suas crônicas sobre futebol. Das melhores que escreveu como botafoguense de sete costados que era. Não se furtou a expressar sua paixão por Garrincha, o camisa 7 do Botafogo, de quem pretendeu escrever uma biografia, mas sucumbiu aos dribles fora do campo em que Mané também era mestre. Desistiu da empreitada depois de fracassados almoços em que o craque jogara para escanteio as promessas.

Além dos especialíssimos perfis que fez de Garrincha, escreveu crônicas notáveis sobre futebol como “Adoradores da bola”,  publicada inicialmente em Manchete de 21 de março de 1970 e incluída posteriormente na edição 12 do Diário. Nela, o cronista observa o que considera “o brinquedo essencial do homem” e discorre sobre a “verdade integral” que é a bola, na sua opinião. Não é pouca coisa. A prosa é de poeta, não há dúvida, e é a outro poeta, Rainer Maria Rilke, que ele recorre para explicar a genuína paixão humana pelo futebol, traduzindo com suas palavras a opinião do autor de Elegias de Duíno: “A lei da gravidade e a liberdade do voo são valores atuantes da realidade humana. Atirar e agarrar são formas fundamentais do nosso comportamento diante da existência”.

O jogador de futebol Waldir Pereira, o “Príncipe etíope”, como chamou Nelson Rodrigues ao genial Didi, não podia deixar de aparecer entre os grandes perfilados de Paulo Mendes Campos, que em “Didi, coisa mental” analisa a “serenidade olímpica” do jogador e a diferença entre o estilo dele e de alguns de seus pares mais talentosos. Bela síntese.

“O torcedor brasileiro é, antes de tudo, um fraco. Sofre exaustivamente os 90 minutos regulamentares e aproveita os 15 de intervalo para tomar um cordial ou vituperar os erros táticos ou individuais que porventura estejam ocorrendo”, escreve ele em “Copa 1974”. E na edição 19 do Diário, em “Pok-tai-pok”, a tabelinha, no vocabulário dos mexicanos, visita o México pré-colombiano para enriquecer a história do futebol. Além de ter sido incluída no DT, a crônica seria publicada no Jornal do Brasil de 24 de julho de 1988 e incluída em O gol é necessário, de 2008.

A “Artigo indefinido” e “O gol é necessário” segue-se “Poeta do dia”, a terceira seção, que, com as anteriores, dá vertebralidade ao Diário.  O título cai bem. Sugere a periodicidade exigida em jornal, mas a coluna bem podia se chamar “Poeta da vida”: todos os autores nela incluídos  aparecem com frequência, ao longo de anos, nas listas de referências  dos cadernos de Paulo Mendes Campos. Verlaine é um deles. Só aos populares versos da “Chanson d’Automne” ele destinou algumas boas páginas de exercício, no esforço de achar a palavra certa, o ritmo certo. São várias tentativas de tradução para os famosos “Les sanglots longs/ Des violons/ de l’automne/ Blessent mon coeur/ D’une langueur/ Monotone” (clique nas imagens para ver em tela cheia):

Imagens retiradas dos caderninhos do acervo de PMC no IMS

Paulo Mendes Campos não precisava deitar erudição para escrever  uma síntese a um só tempo crítica e biográfica. Foi o que fez em apenas quatro parágrafos, quando morreu o poeta anglo-americano W. H. Auden, em 29 de setembro de 1973. Homenageou o autor do antológico “Funeral blues” com um texto curto intitulado “O poeta que se foi”, publicado inicialmente em Manchete de 20 de outubro de 1973 e depois incluído na seção “Artigo indefinido” da edição 13 do Diário. Auden, que ele considerava dos mais “preciosos poetas” do século XX, foi ainda o escolhido para a seção “Poeta do dia” da edição 20 do DT, representado com o poema “Balada de uma donzela”.

A devoção a Auden não lhe diminuía o interesse por outros poetas. Ainda que reservasse páginas e páginas de um de seus cadernos ao minucioso fichamento do livro de Edmund Wilson intitulado Axel’s castle, sobre T.S. Eliot, ou mesmo que, entre os prosadores, anotasse inúmeras frases de Tchekhov, e estudasse, por escrito, vida e obra de Virginia Woolf, parece que seu entusiasmo por García Lorca se impunha. Não falo de saber, admiração ou reconhecimento, e sim de entusiasmo. O texto do “Artigo indefinido” sobre Lorca, publicado pela primeira vez em Manchete de 25 de abril de 1975, é especialmente vibrante, e nele Paulo inclui sua tradução de “A casada infiel”. Algumas soluções como o “de pronto” nos seguintes versos: “Já nas últimas esquinas/ toquei seus peitos dormidos/ e se me abriram de pronto/ como ramos de jacintos”, parecem mais felizes que a opção do também excelente Afonso Felix de Sousa, que optou por “Já nas últimas esquinas/ toquei seus peitos dormidos/ e pronto eles se me abriram/ como ramos de jacintos.

Na opinião de Paulo Mendes Campos, o Romancero Gitano, coletânea da qual faz parte o poema, é um livro perfeito; nada menos. E a consequência dessa maestria foi que “a fama de García Lorca abriu-se em círculos concêntricos como a água mansa ferida pela pedra” – considerava ele. No Brasil, o livro foi integralmente traduzido por Afonso Felix de Sousa.

A flama do leitor/editor do DT não esconde os cuidados do tradutor que Paulo também foi, como se lê na apreciação que fez sobre o poema “Romance sonâmbulo”, também do Romancero, cuja tradução ele incluiria em Trinca de copas, de 1984:

“Romance Sonâmbulo” é outro dos poemas mais famosos de Lorca. Rafael Alberti o considerava a melhor balada moderna da literatura espanhola. Verde que te quiero verde. Bowra traduziu isto para o inglês: Green, how I love you, green. Francamente: foi-se a verde graça. Nims viu nesse verso um intraduzível feitiço, que significa tudo e nada significa. Verde significa green; te quiero significa I love you e I want you. Que, não passaria de modo algum para o inglês, significando algo como the fact is that, e sendo ao mesmo tempo mais que um expletivo retórico. Não dá! Concluiu com juízo o professor; e o leitor que dê um jeito de morar na integral verdade destas palavras: Verde que te quiero verde. Para nós, brasileiros, não é nada difícil, no caso; mas por aí temos uma ideia dos abismos que faíscam na singeleza da sintaxe lorquiana.

* Elvia Bezerra é coordenadora de literatura do IMS.

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