Filmes irmãos

Cinema

22.10.14

Libertários e Chapeleiros (que o IMS projeta amanhã, 23 de outubro) são filmes irmãos, oriundos de projeto universitário, concebidos como elementos de divulgação de pesquisa sobre as origens do movimento operário no Brasil.

Complementares, valem-se de estratégias diferentes. Libertários adota o recorte histórico enquanto Chapeleiros vai a campo flagrar o contemporâneo que nada tem de moderno; ilustração viva do arcaico, é sobrevivência do embate físico do homem com a máquina.

Libertários é um filme libelo. Aproveitando-se de ampla iconografia que acabava de ficar disponível à época, – caso da exposição Memória Paulistana, e do arquivo Edgard Leuenroth, fonte primária da pesquisa a que estava associado –, Lauro Escorel Filho utiliza de modo original filmes de época, de exaltação dos feitos industriais, que contém muitas cenas autênticas das fábricas, mas com sentido inverso. Onde era para ver orgulho das classes produtoras, irrompe opressão e exploração das classes trabalhadoras.

Imagem do flime Libertários

A principal habilidade de Libertários está em acrescentar materiais contemporâneos, que se fazem passar por registros de época. Othon Bastos interpretando o operário, encarnando a iconografia, era expediente inusual na época, presa a protocolos de autenticidade.

Libertários investe com coragem contra certa historiografia dominante no decênio de 1970, que desacreditava a contribuição dos anarquistas na evolução da consciência de classe entre os operários, atributo então tido como exclusivo dos comunistas.

Com o firme objetivo de persuadir o espectador, e conquistá-lo à sua causa, Libertários assume a vocação de filme-senha, destinado à agitação política, no melhor estilo militante. Não houve cineclube ou sindicato no decênio de 1980 que não disputasse a cópia de Libertários para suas sessões de cinefilia e arregimentação partidária. 

Chapeleiros é um filme fora da norma do documentário político no Brasil. Por isso mesmo nem sempre foi bem compreendido pelos seus analistas, pois se recusa a tomar depoimentos de operários e patrões e policiais conforme rezava a cartilha; investe na observação demorada do ato de trabalhar numa velha fábrica.

De origem inglesa, Adrian Cooper, fotógrafo e diretor de Chapeleiros, chegou ao Brasil com a bagagem da tradição visual e literária de sua formação, que emprestou ao seu filme campineiro. Adrian, ao adentrar a fábrica, deparou-se com a atmosfera de Dickens, referência incontornável.

Cena do filme Chapeleiros

A lida do operário com o material, o manuseio apropriado, a repetição sem automatismo, a máquina como extensão do corpo e seu algoz, são as dimensões que emergem naturalmente desse filme sem palavras. Acusado de estetizante, Chapeleiros não hesita em buscar a visualidade profunda em texturas e grafismos, na própria materialidade, ancorado numa trilha sonora sóbria, composta exclusivamente de música barroca e ruídos.

No ambiente opressivo dominado pelo vapor, que gera um calor que os operários enfrentam de torso nu, há um momento de humor involuntário: as marmitas aquecendo no vapor da máquina que enforma os chapéus.

No longo plano da saída da fábrica, cada trabalhador recolhe e deposita sua ficha funcional, sob o olhar distraído do vigilante. A identidade reduzida a uma ficha. Os mais velhos usam chapéu Cury.

A velha fábrica resiste, pois o trabalho artesanal ainda tem vez na economia industrial. Mas seu lugar não é mais confortável na paisagem urbana e social. Sua chaminé procura a melhor posição dentro do quadro do filme. À esquerda? Direita? A câmara hesita e a montagem não alivia. A dança da chaminé nos alerta para a constatação inevitável: aquela fábrica já não tem mais uso no moderno capitalismo; é um fantasma a assombrar o país do milagre econômico.

Este texto integra o livreto do DVD de Libertários e Chapeleiros.

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