“Estou sentado num escritório, cercado de cabeças e corpos”. Assim começa Graça infinita, romanção de David Foster Wallace de 1.200 páginas recém lançado no Brasil, dezoito (sim, dezoito!) anos depois da publicação original. A maneira como se inicia um romance é sempre importante, e quando se trata de um tijolão desse tamanho, conhecido por sua verborragia absoluta e pelas notas de rodapé que, dessa vez, não estão no rodapé, mas ao final, enfim, considerando tudo isso, não deixa de ser esquisito começar com essa frase sobre cabeças e corpos. Pois se há um adjetivo que se adequa a Graça, este adjetivo é “cerebral”. E aí o Foster Wallace vai lá e começa falando de corpos.
Li Graça infinita pela primeira vez em 2006. O romance me frustrou por uma série de razões, e senti como se ele não valesse o esforço, apesar de ter gostado de várias coisas aqui e ali. Agora, relendo oito anos depois, descubro que o que antes me agradou se revelou o maior fardo na releitura, e o que antes descartei com um gesto blasé, agora é o que mais me interessou.
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Construiu-se um agrupamento de fanáticos ao redor de Graça infinita de tal maneira que há até uma Wikipédia própria de Foster Wallace com análise de referências página a página. Não há uma nota de rodapé, uma referência a um seriado obscuro, que não tenha sido discutida, interpretada, analisada até o limite. No período de minha primeira leitura, ingressei no grupo de discussão “wallace-l”, apenas para sair uma semana depois, sufocado por e-mails quilométricos que em poucas semanas devem reunir o mesmo número de caracteres que o livro. Wallace atrai esse tipo de leitor: uma figura obsessiva que não é capaz de jogar uma partida de tênis sem desenhar um gráfico da integral representando o movimento da bola amarelinha. Não é por acaso que aqueles que o leem com mais afinco acabam se tornando seguidores.
A pergunta: você, que não leu Graça infinita, vai gostar de Graça infinita? A resposta depende muito do quão obsessivo você é. Assim como Ulisses de Joyce, é um romance que recompensa o seu investimento. Quanto mais você se dedica à leitura, quanto mais você pesquisa as referências que ele constantemente joga em sua cara, menos você se sente perdido e mais imerso na experiência fica. É um livro que exige que você leia com o Google aberto – e, como Ulisses, também traz um diálogo intertextual com um clássico da literatura (no caso do livro de Wallace, Hamlet).
Embora o livro seja vendido como um romance divertido (o que é, ocasionalmente) e amplamente legível, a verdade é que é uma tarefa dos diabos ler Graça infinita. Para se ter uma ideia: o livro se passa num futuro imaginário no qual os anos do calendário foram vendidos para megacorporações, então em vez de 2009, por exemplo, temos o “Ano da fralda geriátrica Depend”. Até aí, tudo bem, uma ideia muito criativa e interessante. Só que o leitor só descobrirá a ordem cronológica dos anos na página 230 da edição brasileira! Até então, desloca-se à deriva na não-linearidade brutal de Foster Wallace. E não há Ovomaltine quentinho para o leitor. Suportar as centenas de páginas iniciais é uma provação. Os personagens se multiplicam, as idas-e-vindas no tempo nem sempre são demarcadas, os acrônimos (algo que estava muito na moda nos anos 90 do mIRC e do BBS que Foster Wallace assimilou em sua ficção), as explicações são exaustivas e tendem a descambar para um blá blá blá científico…
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Foster Wallace sempre aparece citado como uma espécie de segunda leva de pós-modernistas, alguém pós-Pynchon, pós-Barthelme, pós-Barth, alguém, em resumo, pós-ironia. Graça infinita, por sua vez, tornou-se o expoente máximo desse tipo de ficção, que teria como companheiro, talvez, Dave Eggers. E, apesar de Wallace ser lido como uma forma de “superação de Pynchon”, a dívida de Graça infinita em relação a O arco-íris da gravidade é imensa – em uma das subtramas, há personagens que são agentes duplos-duplos e uma grande conspiração maluca que beira a incompreensibilidade, pois é difícil entender quem está de qual lado. E, no entanto, Wallace parece buscar algo além do jogo desnorteante da paranóia, e tenta dar uma tridimensionalidade aos personagens mais secundários – ou seja, fazer um livro repleto de gente com “cabeças e corpos”. Ler Graça infinita, portanto, é um tanto obrigatório para compreender boa parte do que tem sido produzido de mais inovador na literatura ocidental e de que maneira a nova ficção pode responder à obra da geração anterior.
O autor e sua icônica bandana
Na primeira leitura, foram justamente os truques formais que me encantaram: a ideia de que as notas de fim de livro não são desprezíveis, mas carregam informações fundamentais à trama. Que as notas também têm notas dentro delas, ou seja, não só são comentários como comportam metacomentários. Os truques, no entanto, como qualquer piada que dura tempo demais, acabam virando cansativos. As interrupções das notas – que nas primeiras centenas de páginas são engraçadinhas – logo viram quebras de fluxo irritantes.
OK, OK, tudo tem um propósito, claro que Foster Wallace pensou nisso tudo ao escrever o livro dessa forma. “A pessoa deprimida”, um dos contos mais conhecidos do autor, tem uma mulher contando seus dramas ao passo que a página vai sendo engolida aos poucos por notas de rodapé repletas de jargão psicanalítico. É quase um conto conceitual e, mais uma vez, a ideia é inteligentíssima. Mas, poxa vida, que história chata de se ler. Graça infinita está cheio de espertezas conceituais, como as explicações matemáticas para as coisas mais banais. Mas céus, senhor Wallace, na página 460 realmente precisava explicar o funcionamento de cada quadra da academia de tênis na qual o romance se passa desde a primeira linha?
O romance tem como tema central a questão do entretenimento e a obsessão norte-americana por se viciar em qualquer coisa, seja uma droga alucinógena, um esporte ou um programa de televisão. Wallace, apesar de sempre forrar seus livros de referências pop, revelou-se um crítico severo à cultura do entretenimento. O hermetismo de Graça infinita pode ser lido, então, como um malabarismo formal de entreter o leitor (com anedotas divertidas espalhadas pelas 1.200 páginas) e, ao mesmo tempo, exigir muito dele, demandar pesquisa, anotações (recomendo muito ler com um caderninho ao lado) e o esforço de constantemente retornar algumas páginas para encaixar algumas peças do quebra-cabeça.
Foster Wallace é um escritor brilhante; nos ensaios, o seu talento está depurado, o seu estilo mais refinado, as suas ideias mais límpidas. Pergunto-me o quanto da fama de Graça infinita não existe pelo fato de que o romance mais longo de um autor sempre costuma ser considerado a sua obra-prima.
Outro fator na questão “legibilidade” é como Graça infinita está imerso na cultura norte-americana. O êxito do livro fora dos Estados Unidos é prova de como, devido ao poder geopolítico, muitos aspectos da cultura americana soam como “universais”, de tão difundidos. E, no entanto, graças ao seu apreço pela cultura de massas para além do óbvio, Wallace enche o romance de referências que se perderão para a maioria de leitores brasileiros. A tradução de Caetano Galindo para a esta edição é corajosa e muito bem sucedida, especialmente nas partes de diálogos, no ouvido para o coloquialismo e para os sotaques. Não consigo imaginar uma tradução melhor. Apesar disso, há diversos trechos que “soam como inglês”, pois Wallace é tão, tão, tão americano, que não há recurso tradutório eficaz o bastante para traduzir culturalmente o modo de escrever do autor. (Manter essa “americanidade” em certos trechos pode muito bem ter sido uma escolha pensada do tradutor.)
Portanto, para o leitor que encarará Graça infinita pela primeira vez, pode-se dizer que o sucesso de sua leitura dependerá de a) a paciência do leitor; b) a disposição do leitor em interromper a leitura para pesquisar; c) o quanto ele se interessa por cultura norte-americana.
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Embora esteja dando a impressão de que detestei Graça infinita, nesta releitura prestei atenção no que torna Foster Wallace realmente único, e se há algo que faz o livro valer a pena, não são todos os jogos formais, mas os seus momentos mais humanos. Em seus melhores contos, como as “breves entrevistas” de Breves entrevistas com homens hediondos, e “Good Old Neon”, nos deparamos com personagens com loucuras muito próprias, muito particulares, muito chocantes para o olhar do outro, e, ainda assim, figuras que nos despertam compaixão e empatia. Nos seus ensaios, Wallace deixa claro o seu objetivo na ficção – o de sair do solipsismo e olhar o outro (o discurso “This is Water” é o exemplo mais óbvio). É apenas isso que nos impedirá de ter uma vida horrível, diz Wallace com todas as letras. E esta questão da incomunicabilidade está presente em Graça infinita desde o primeiro capítulo, com a cena de Hal engasgado, tentando se expressar e falhando horrivelmente (e constrangedoramente).
No meio de descrições extensas e monótonas, Graça infinita oferece uma série de belos momentos, como a conversa de Hal com Orin sobre o suicídio do pai, e a história do tenista que jogava só com uma mão pois na outra segurava uma Glock 17 apontada contra a cabeça, sempre ameaçando suicidar-se caso perdesse a partida. Não é à toa que este romance tão cerebral comece com “cabeças e corpos”, como se nossa forma física ocultasse um sistema mental complexo e quase impossível de comunicar a outra pessoa. Wallace é movido pelo desejo de comunicação de algo profundo e inalcançável, e está disposto a usar quantas páginas forem necessárias para isso.
O primeiríssimo capítulo do livro é uma espécie de in media res no qual Hal, o protagonista, supostamente contará o que aconteceu. Esse recurso é conhecido como “framing device”, uma moldura narrativa, como quando o jornalista em Cidadão Kane precisa investigar o que é Rosebud e aí o espectador poderá conhecer a história. Cidadão Kane é todo montado em cima de flashbacks contando trechos da vida do personagem título. Ao final, o jornalista discursa que a vida de qualquer homem é como um quebra-cabeça, que é impossível resumi-la, que Kane é como um quebra-cabeça que está falando uma peça. Graça infinita tem uma estrutura com algumas semelhanças: há esse “framing device” inicial (e frustrado, devido à incomunicabilidade mencionada acima), mas, dentro do romance, mais histórias se abrem, mais histórias-dentro-de-histórias surgem, e o livro se torna quase uma máquina bem azeitada de narrar. As cenas se proliferam, e muitas vezes não acrescentam, não parecem somar em direção a um significado final. Embora os fãs ardorosos discordem e digam que tudo está conectado, a sensação é que o livro não se fecha de modo algum, que poderia seguir por mais mil páginas (afinal, novos personagens são apresentados o tempo todo), que lemos um quebra-cabeça de dois milhões de peças ao qual só tivemos acesso a mil e duzentas dessas peças, nem sempre bem escolhidas. Há algumas peças lindas, com desenhos feitos à mão de grande esmero, e há outras que são como as peças que compõem um céu azul e sem nuvens num quebra-cabeças, que nunca sabemos onde colocar e que pelo amor de deus, são tão chatas de montar que a vontade é de jogar todo o quebra-cabeças longe.