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Artes

30.03.13


Vasily Kandinsky, Untitled | inscrito no verso: “Aquarelle 1910 (abstraite)”, 1910

 

Quando Alfred H. Barr Jr inaugurou o Museum of Modern Art em Nova York, em 1929, a iniciativa foi considerada paradoxal: um museu para uma arte avant-garde que era, em grande parte, uma obra em progresso. Não obstante, para sua principal exposição, Cubism and Abstract Art [Cubismo e Arte Abstrata], em 1936, Barr elaborou um projeto que afunilava os vários afluentes do exercício modernista da época em dois grandes rios, que ele batizou de “arte abstrata geométrica” e “arte abstrata não geométrica”. Na realidade, este esboço era uma confiante projeção de uma história que o museu proporia, estrategicamente, para ostentar e definir. Se a arte modernista foi criada na Europa, foi exposta primeiramente nos Estados Unidos – e a abstração era seu Geist.

Avance 77 anos. Para Inventing Abstraction, 1910-25 [Inventando a Abstração, 1910-25] (em cartaz até o dia 15 de abril), a curadora Leah Dickerman mostra um diagrama diferente: não um projeto diacrônico de movimentos afluentes, e sim uma rede sincrônica de “conectores” carismáticos, tais quais Wassily Kandinsky, F.T. Marinetti, Guillaume Apollinaire, Francis Picabia, Tristan Tzara, Theo van Doesburg e Alfred Stieglitz; todos tão polemistas (críticos, editores, organizadores de exposições) quanto artistas. Bem como seu projeto, a exposição se volta para o período em que a abstração surgiu, e não adiante, para seu eventual triunfo; em vez de projetar um telos, um motivo final, ela historiciza um momento ocorrido há um século. Ao fazer isso, a exposição sugere, talvez involuntariamente, um encerramento para esta prática. Seria a abstração “algo do passado”, uma forma de arte que – ainda que tenha tido um impacto histórico em escala mundial – está bem distante de nós?


Pablo Picasso, Femme à la mandoline, 1910

 

Inventing Abstraction se inicia com uma intricada imagem cubista de Picasso. É um início convencional o suficiente (lembre-se do título da exposição de Barr), e, ainda assim, incontornável: apesar de Picasso nunca ter se tornado abstrato (e tampouco Matisse o fez), o cubismo foi o manancial da abstração, e protagonistas-chave como Piet Mondrian e Kazimir Malevich sentiam que deveriam lidar com isso. Dickerman destaca Kandinsky a seguir, mas não apresenta a abstração como se ela tivesse uma origem única. Suas fontes são trans-históricas e multiculturais (entre as inspirações modernistas se encontram a arte africana, ícones bizantinos e ornamentos islâmicos): a abstração é sempre descoberta na mesma proporção em que é inventada. Dito isso, o campo de ação da exibição é estritamente europeu (incluindo Rússia e Grã-Bretanha), ainda que a seleção seja ampla e variada dentro deste recorte, com inúmeras justaposições provocativas e com um número maior de mulheres do que nas exposições anteriores (Sonia Terk e Sophie Taeuber, por exemplo, ganharam o mesmo espaço que seus maridos, Robert Delaunay e Hans Arp). Finalmente movimentos como o futurismo italiano e o construtivismo polonês têm seu valor reconhecido, e figuras menores como os britânicos Lawrence Atkinson e Duncan Grant, bem como os americanos Stanton Macdonald-Wright e Morgan Russell, também tiveram sua vez. Dado o custo do seguro, preocupações com a conservação das obras e os problemas políticos (a Rússia embarga os empréstimos), é provável que nunca mais vejamos uma reunião tão extraordinária de arte abstrata deste período novamente.

Apesar de Inventing Abstraction incluir escultura, fotografia e filme, ela concentra-se na pintura. Não se trata de uma questão óbvia como a abstração absoluta deveria ser alcançada nestas outras mídias, e o projeto modernista de “pureza” – de uma arte liberta de qualquer semelhança com o mundo, bem como de qualquer função – privilegiou a pintura, em todo o caso. Ao mesmo tempo, muitos pintores precisaram do auxílio de, ou pelo menos da analogia com, outras artes: música e poesia acima de todas. A música tem sido considerada, há muito tempo, como a mais abstrata (“todas as artes aspiram a condição de música”, disse Walter Pater), e Dickerman assinala a importância não só do cromatismo de Wagner e da atonalidade de Schoenberg para Kandinsky (um concerto de Schoenberg em Munique no dia 2 de janeiro de 1911 foi uma epifania para o artista), bem como da reflexibilidade estrutural de Bach para Paul Klee (que era um talentoso músico). Em relação à poesia, Mallarmé já havia anunciado uma crise, e a geração seguinte levou o ataque ao convencional ao extremo na futurista parole in libertà (“palavras em liberdade”), nos textos zaum (transracional) russos e nos poemas sonoros (Kandinsky, Arp, van Doesburg e Kurt Schwitters, todos produziram importantes exemplos).


Theo van Doesburg, Study for Composition (The-cow) c.1917

 

A tensão entre o meio específico e os estímulos do cruzamento de mídias foi produtivo para a abstração inicial. Indo contra os críticos formalistas, de Roger Fry a Clement Greenberg – que enfatizam que o ideal de pintura é estritamente visual e espacial -, Inventing Abstraction revela como artistas abstratos, por vezes, estão preocupados com a tateabilidade dos materiais (faktura ou “textura” era um lema dos russos) e algumas vezes com a temporalidade da animação (lado a lado com filmes abstratos de Hans Richter, Viking Eggeling e László Moholy-Nagy, estão inesperados projetos de Grant e Léopold Survage, um artista de ascendência finlandesa que morou em Paris). “Postas à prova pela abstração, as fronteiras da pintura e de outras mídias tendem a se dissolver”, Dickerman argumenta, em um contra-ataque à posição de valorizar o que é específico do meio. Por exemplo, a pintura abstrata induziu a uma perda do chão do observador: Malevich sugeria perspectivas aéreas em algumas de suas primeiras abstrações, e El Lissitzky revolveu o seu diagramático Prouns como se os pintasse com o objetivo de confundir qualquer senso de orientação. Tais experimentos levaram alguns pintores – Kandinsky, Lissistzky, van Doesburg – a interiores abstratos, verdadeiros e projetados; além de outras interseções. Dickerman opõe os meios específicos e o intercâmbio de meios, mas os dois princípios não são completamente incongruentes: ainda que opostos em método, o Gesamtkunstwerk e a pintura pura estão ambos comprometidos com a ideia de uma autonomia estética.


El Lissitzky, Proun 2C c. 1920

 

Artistas estavam na divisa da abstração muito antes da ruptura de 1912: por que é um conceito tão difícil de aceitar, mesmo para mestres como Kandinsky? O principal motivo era que isso parecia expor a arte à arbitrariedade, ao decorativo, ao subjetivo. Se a arte não estivesse mais enraizada no mundo, o que poderia sustentá-la? Se ela não fosse mais governada pelo referente, o que poderia motivá-la? Em geral os artistas buscam a base para a abstração nos dois extremos, no transcendental reino da Ideia (geralmente platônico, hegeliano ou teosofista) ou no registro material do meio. Neste caso, a abstração fornece uma resolução estética para a contradição filosófica entre idealismo e materialismo – a qualquer um dos quais pode servir. Contra a arbitrariedade, artistas como Kandinsky também declaravam a “necessidade” de abstração – a história demanda, a arte requer – e tais asserções, por sua vez, engendram um fluxo de palavras: proclamações individuais, manifestos de grupos, leituras, tratados, diários. Dickerman enxerga essa relação visual-verbal como uma “ruptura” sintomática, até mesmo como uma dissociação da sensibilidade: “Essa estrutura – de imagens e palavras existindo em esferas paralelas, as duas mantidas a distância – sugere uma divisão no modernismo”. Ainda assim é possível observar uma relação suplementar, e desconstruí-la propriamente: qual termo neste binário realmente determina o outro em cada instância? De todo modo, ao ser analisado, é importante o insight de que prática e teoria (ou, neste caso, execução e publicidade), posteriormente, compensariam uma a outra na arte do século 20.

A abstração recorreu não somente a analogias artísticas e a reforços textuais, mas também aos avanços radicais das ciências de sua época, como a teoria da relatividade, a física quântica e a geometria não euclidiana; de maneira ainda mais germânica, Dickerman discorre, existiam novos paradigmas filosóficos como a fenomenologia e a semiótica. De acordo com a fenomenologia, a percepção não é independente e objetiva – não “realista” neste sentido -, e sim subjetiva e incorporada, logo “abstrata”. Além disso, a semiótica rejeita a crença de que a língua alude diretamente ao mundo (neste caso, a intimidade do linguista Roman Jakobson com Malevich é bastante reveladora). Apesar de Dickerman fazer menção ao impacto de novas tecnologias e cultura na abstração, pode ser interessante ouvir mais sobre esta questão. A exposição oferece uma forte percepção das atrações ambíguas do mundo abstrato do maquinário industrial, como evocados – diferentemente – pelos futuristas, Fernand Léger e Marcel Duchamp. Contudo, pouco apreende das abstrativas forças dos bens produzidos em massa, o abstrato próprio da vida capitalista, como variadamente explorado pelo trabalho de Georg Simmel, György Lukács e Alfred Sohn-Rethel. Depois de Greenberg (para não mencionar Theodor Adorno), geralmente pensamos na abstração como um afastamento do mundo moderno, quase como um refúgio para a arte, mas o oposto é quase tão verdadeiro: o mundo moderno tornou-se muito abstrato para poder ser representado como antigamente.

Dickerman revisa Barr dramaticamente, mas não no que se refere à afirmação da abstração – na qual o MoMA permanece muito interessado. “As proposições são inúmeras, e, por vezes, contradizem umas às outras”, ela conclui, “mas em sua totalidade elas indicam o término da pintura em sua forma tradicional, bem como sua abertura para as práticas do século por vir”. Mas a pintura abstrata foi uma ruptura tão absoluta como soa a afirmação? Dickerman insiste no corte essencial com o antigo modelo de perspectiva pictórica, com sua metáfora de uma janela para o mundo, sua sublimação da materialidade da pintura, sua asserção da “primazia do visual”, a pretensão de “um olhar desencarnado”, e assim por diante. Isso é fato: para alguns artistas, como Aleksandr Rodchenko, a abstração realmente deu fim ao projeto de representação. Ainda assim, para outros, ela representou a purificação da pintura, não seu final, mas seu epítome (um dos propósitos da “pintura pura”). Dado o viés hegeliano de muitos teóricos, a abstração pode ser entendida como a superação da representação, ou seja, sua simultânea negação e preservação. Logo, mesmo que abstracionistas como Kandinsky, Malevich e Mondrian tenham revogado qualquer semelhança com a realidade, também afirmaram uma ontologia do real; mesmo que tenham rejeitado a pintura como um retrato do mundo epifenomenal, insistiram em retratá-la como algo análogo com o mundo de númeno: a aparência é sacrificada no altar da transcendência. Então, ainda que esses artistas tenham rompido com a pintura representacional, geralmente o fizeram de um modo que dão prosseguimento à tradição, reafirmando o critério de unidade composicional para a obra de arte e da experiência epifânica para o observador. Nesse sentido, a gloriosa Windows de Delaunay é uma meditação sobre a pintura que rivaliza com qualquer autorretrato pintado por Velázquez ou Vermeer.


Robert Delaunay, Fenêtres (Windows) 1912

 

Logo, se o “término da pintura em sua forma tradicional” não é definitivo, o que dizer sobre a “abertura para as práticas do século por vir”? Inventing Abstraction contém exemplos de invenções avant-garde quase contemporâneas com a pintura abstrata; tais quais as colagens não objetivas, relevos e construção (um impressionante modelo do Monument to the Third Internacional, que não foi erigido, de Vladimir Tatlin ocupa uma galeria). Para Dickerman, a abstração fornece esses artifícios e outros também, incluindo todos os que associamos ao nome “Duchamp”: os ready-made, os experimentos com o acaso, a obra de arte como conceito e assim por diante. Contudo, esta poderosa reivindicação está aberta a discussão: já presente no mapa esquemático desenhado por Barr para o MoMA, e posteriormente na teoria da “pintura modernista” promulgada por Greenberg, a abstração surge para substituir estas outras estratégias, e as mesmas não retornarão sem nenhuma força até o domínio do expressionismo abstrato – nas neo-avant-gardes dos anos 1950 e 1960. Com certeza a abstração foi uma ruptura, mas também foi utilizada como defesa para rupturas possivelmente mais radicais.

A última galeria da exposição sugere os destinos diversos da abstração: é um testamento para a abstração enquanto um futuro necessário não só da arte modernista, mas também da vida moderna tout court. Ele se dá na forma de peças experimentais de Moholy-Nagy, em quase caricaturas de abstração como um tipo de nonsense dadaísta nos objetos ornamentais de Taeuber e Arp e em um conjunto de ensaios escritos de forma abstrata, realizados por Katarzyna Kobro e W?adys?aw Strzemi?ski – os quais, ainda que extraordinários, também parecem atrofiados, como se não tivessem para onde ir, historicamente. E a abstração hoje em dia? Ela não tem as grandes ambições – revolucionárias, utópicas, transcendentais – de seu período inicial; este não é, claramente, o nosso costume. Muitos artistas tratam a abstração mais como um distante arquivo a ser citado do que uma contínua tradição a ser desenvolvida – afinal, nada pode ter um impacto histórico e mundial duas vezes.

Vladimir Tatlin, Monument to the Third international, 1920

 

Hal Foster é crítico de arte norte-americano. Este texto foi publicado na London Review of Books

Tradução de Thiago Lins

Site interativo do MoMA para a exposição “Inventing Abstraction, 1910-1925”

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