Um para o outro

Em cartaz

24.11.15

Amante da beleza e da harmonia, o poeta petropolitano Raul de Leoni não se enquadrou numa classificação convencional e acabou por ser aceito como pré-modernista. Em vida publicou um único título, Luz mediterrânea, de 1922, do qual faz parte o soneto “Eugenia”, que talvez pudesse ser ilustrado com esta foto tirada na praça dr. Pedro Sanches, a principal de Poços de Caldas. O soneto abre com os seguintes versos:

 

Nascemos um para o outro, dessa argila

                                    De que são feitas as criaturas raras;

 

e termina no mais que célebre terceto:

 

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,

                                    O nosso amor conceberia um mundo,

                                    E do teu ventre nasceriam deuses.

 

Pois foi assim com Lygia Marina de Sá Leitão e Nelson Pires de Moraes, o casal fotografado. Cariocas, ela, de Copacabana, bairro onde nasceu e foi criada, e ele, do subúrbio do Rio de Janeiro, não precisaram de túnel ligando zona sul e norte da cidade para se encontrarem em 1945, quando o rapaz, ao passar em frente ao prédio onde morava Lygia, a viu no portão. A passos hesitantes, continuou a andar, mas, sem suportar a ideia de deixar para trás a moça mais linda do mundo – achou ele –, decidiu voltar e, confiante em seus olhos verdes, dirigiu-se a ela com a cantada fatal: – Estava me esperando?

Dali a poucos meses, em 5 de novembro daquele mesmo ano, dia do aniversário da noiva, casaram. Consagrava-se assim uma história que já se apresentaria bem desenvolvida na década de 1950, quando um fotógrafo de plantão na praça de Poços bateu a foto dos dois.

Não terá escapado a ele a beleza do casal. Certamente notou os traços delicados do rosto de Lygia Marina, a firmeza dos ombros e o torneado discreto dos braços, assim como a mão jovem em que não se vê uma ruga, uma veia que, saltada, possa macular o dorso liso com terminações nas unhas pequenas, bem cuidadas. Terá igualmente observado a perna que se pode entrever por meio da ligeira suspensão da saia da jovem senhora. Tampouco lhe terá passado despercebido o rosto viril de Nelson, o tônus dos braços, a esbeltez de um homem que, beirando os quarenta anos, mantinha o porte atlético, galã de olhar desafiador.

Os dois fixam os olhos na câmera, mas, antes disso, estão fixados um no outro: enlaçam-se com a mão direita em aperto firme e, com a esquerda, ela toca o braço esquerdo dele. Cabeça e colo os unem mais uma vez; tocam-se de todas as maneiras que a pose permite. Àquela altura, Lygia Marina já era mãe de quatro dos seis filhos que teria entre 1946 e 1960, mas conservava a forma e o frescor da juventude.

Sabendo que se passaram sessenta anos desde o clique do fotógrafo, é legítimo que se pergunte: que destino tiveram os dois? Viveram juntos até que a morte os separasse? Foram felizes?

Conta Katya de Moraes, uma das filhas, que, como na foto, os pais estiveram sempre de mãos dadas. Na casa da rua Vicente de Souza, 25, em Botafogo, onde moravam, sentavam-se lado a lado para assistir à televisão juntos, mão sobre mão, depois de ele chegar da Moraes Irmãos Ltda, firma de instalação de aquecimento central da qual era sócio com o irmão, Oswaldo. A família reunia-se para jantar, e logo depois da refeição vinha a ordem materna: “Crianças pra cama” – os pais queriam ficar sós.

Sem se descuidar da educação dos filhos, acompanhando-os à escola, ensinando-lhes os deveres de casa diários ou preparando inesquecíveis papos de anjo, era ao marido, no entanto, que Lygia Marina se doava inteira. Vivia atenta ao verso do poeta italiano Torquato Tasso, que já no século XVI dizia:  “Perdido é todo o tempo que com o amor não se gasta”. Dificilmente os filhos teriam gostado do verso, se o tivessem ouvido e entendido, mas, talvez, sentindo-o no cotidiano, procurariam compreendê-lo no futuro, quando adultos, e cada um a seu modo.

Não só durante a semana as crianças, acompanhadas de uma empregada, deviam dormir cedo. Nos fins de semana, a ordem era a mesma. Desse modo, Lygia, perfumada de Ma Griffe, saía com o marido para  dançar em Copacabana, naquela década de 1950 em que o bairro começou a absorver boêmios e dançarinos vindos do centro da cidade, assim como casais que queriam deslizar pelos salões, cheek to cheek, ao som do nosso melhor samba-canção ou de clássicos como Unforgettable e C’est Magnifique. Foi o tempo das boates, do Maxim’s e do Vogue,  mas Lygia e Nelson preferiam a pista de dança do Golden Room do Copacabana Palace, onde ela terá encantado o público com sua cor preferida, o verde, o verde dos vestidos ou dos complementos, muitos deles  presentes do marido.

“O nosso amor conceberia um mundo,/ e do teu ventre nasceriam deuses”, escreveu Raul de Leoni no soneto que, para o feroz crítico Agripino Griecco, é “obra-prima que todos os brasileiros deveriam saber de cor”.

Como nos versos de Leoni, todos os seis filhos de Lygia e Nelson saíram  bonitos, e a primeira deles, que herdou o verde dos olhos do pai e recebeu no batismo o mesmo nome da mãe,  não deixou de ser deusa: foi musa de ninguém menos que Tom Jobim, que nela se inspirou para compor “Lygia”, uma de suas mais celebradas canções.

Mas a paixão do compositor não passou de sonho, um sonho que enriqueceu a música popular brasileira ao ser transposto para os versos antológicos: “Sair com você de mãos dadas/ Na tarde serena/ Um chope gelado/ Num bar de Ipanema/ Andar pela praia até o Leblon”, seguido do refrão que é puro suspiro de paixão no prolongamento da vogal final do nome: “Lygia, Lygia”.

Diferentemente de Tom Jobim, que ficou no sonho, Nelson de Moraes tomou posse de direito e de fato do coração de sua Lygia Marina até a morte dele, em 2005, pouco depois de completar 90 anos de idade. Recentemente, ela preferiu recolher-se. Recusou festa para o  último 5 de novembro de 2015, quando se tornou nonagenária. O que não pôde foi resistir aos carinhos dos oito netos que a festejaram discretamente.

Assim como Greta Garbo, que bradou o famoso leave me alone e se escondeu atrás dos enormes óculos escuros, Lygia Marina quis ficar sozinha. Não devia. Ao contrário dos danos que a velhice impôs a uma das maiores deusas do cinema americano, apagando-lhe do rosto os traços da beleza com que subjugou homens do planeta inteiro, a natureza foi mais fiel a Lygia Marina. Não lhe desfigurou o rosto, cujo formato é o mesmo, sem edemas, preservado da deformação que os anos capricham em redefinir, como mostra uma foto dos seus noventa anos. Continua linda.

Se eu a visse, com os cabelos brancos, no seu passo lento, atravessando o calçadão do Leme, onde mora, não hesitaria em afirmar: – “É a moça da foto tirada na praça de Poços de Caldas”. E recomendaria que visitassem, na cidade mineira, a exposição Fotografia de Domingo, que reúne a produção de fotógrafos amadores, e muitas vezes anônimos, dedicados ao registro de memória familiar ou pessoal, como a de Lygia e Nelson no banco da praça.

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