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Se é assim, meu proustiano do coração, vamos às reminiscências. Tento recuperar as lembranças de minha primeira chegada ao Rio. Eu tinha oito anos. Viajamos no Ford 1953 cujo apelido familiar era: William. Meu avô Renato, que conheceu Antonio Candido, também usava casquete de lã no inverno paulistano. Minha avó Eunice, loirinha, de olhos verdes e nariz arrebitado. Minha mãe, Cecília, alta como uma palmeira da praia. Meu pai, que aos 35 parecia um menino: uma vez foi parado na rua por um policial de trânsito que lhe perguntou se ele tinha idade para dirigir e não acreditou que as quatro crianças dentro do carro eram seus filhos.
E nós quatro, que naquele tempo vivíamos ainda em penca, misturados como uma ninhada: Duto, magrela irrequieto. Zé, o “gordinho feliz” que não era gordinho, não sei por que o Duto o chamava assim, e vivia de bom humor. Nem o caçula que um dia foi neném e só conseguiu se livrar do apelido depois dos 40: lindo como um querubim, sempre no banco da frente, no colo de minha mãe. Naquele tempo podia. E eu, banguela e descabelada, joelhos esfolados de tanto subir no muro de casa. Angustiadinha e falante até não poder mais. Mas na estrada, por vezes, entrava no meu barato particular diante da paisagem que eu não parava de inventar a partir dos elementos banais que qualquer beira de estrada oferece.
Depois de horas infinitas, meu pai nos mostrou o “Clube dos Quinhentos”, que não sei se ainda existe, perto de Resende (acho), cujo nome ele adorava e só mais tarde entendi que era a perfeita expressão das quinhentas boas famílias cariocas. E já de noitinha entramos numa avenida que me pareceu sinistra e fascinante, cheirando forte a mangue sexo – como eu reconheci aquele cheiro aos oito anos? A fábrica de Sabão Português, é isso mesmo? – me impôs respeito no ato. Entendi, por conta das paredes brancas e o brasão pintado na chaminé, que aquela não era uma fábrica paulistana. Minha mãe, cheia de orgulho, nos disse que a avenida tinha o nome do avô dela: Francisco Bicalho, engenheiro responsável pela execução do projeto de modernização do centro do Rio feito na gestão do prefeito Pereira Passos. Só bem mais tarde eu soube que, assim como fez Haussmann em Paris, meu bisavô também ajudou a expulsar os pobres do centro do Rio. O centro reformado ficou majestoso, mas os pobres voltaram, como sempre retorna o recalcado, mais dia, menos dia.
O aterro ainda não existia, de modo que passamos por ruas e ruas de casas antigas, muito juntas umas das outras – que diferença dos terrenos largos das casas paulistanas – e não sei como já estávamos em Botafogo numa rua cujo nome brilhou para mim como um cristal arrancado da pedra: Real Grandeza. Era a casa de minha tia avó Ondina, que hospedaria meus avós. Foi então que entendi que o Rio vivia em outro tempo para onde nunca deixei de querer voltar. Pelo portão de madeira o carro entrou num quintal de terra e parou debaixo de uma das muitas mangueiras que, também elas, cheiravam forte na noite. A casa tinha um porão onde morava o tio avô solteiro, Vavá, que em seu quartinho tocava violão. Um boêmio das antigas. Na varanda do primeiro andar, à qual se chegava por uma escada lateral, apareceu a irmã de minha avó, seu marido e alguns dos treze filhos deles. Não sei se jantamos ali. Só me lembro de ter me esquecido da vida naquele quintal escuro como o de uma fazenda e pensar: aqui é o Rio de Janeiro. Minha casa em São Paulo, na época, também era grande, também tinha quintal onde cabiam os carros, as bicicletas, as crianças. Também tinha varanda. Só que o quintal era calçado de pedras portuguesas, a varanda era de lajota, as árvores na entrada eram pinheiros – os últimos pinheiros do bairro de Pinheiros, literalmente. Das terras do pai de Oswald de Andrade só sobraram os pinheiros da entrada da minha casa de infância, derrubados nos anos 80 quando o terreno virou estacionamento do Pão de Açúcar. Que em São Paulo não é uma montanha, é uma cadeia de supermercados. Nossa casa deve ter sido construída nos anos 1950. A de minha dia Ondina era do tempo do império e eu achava que o império teria acontecido, desde sempre familiar e decadente, na rua Real Grandeza.
Então o Rio de Janeiro era escuro e cheirava a flor da mangueira, o Rio tinha casas com porão e escadas de madeira, tinha uma lua cor de madrepérola do lado de fora que, do lado de dentro, aparecia na janelona de um banheiro maior do que os que eu conhecia e iluminava o mosaico já gasto do lindo piso de ladrilhos pretos e brancos. O cheiro do aquecedor a gás me intimidou um pouco: outro cheiro que nunca vai deixar de me transportar para lá, quero dizer, para aí, sua cidade que é mais minha do que posso imaginar por escrito.
Que impacto teve a praia depois dessa chegada? Quase nenhum. Para uma criança, as praias todas se parecem, e eu passava as férias em São Vicente e Guarujá. Das manhãs em Copacabana, ficou a impressão de uma luz intensa a ponto de se tornar desconfortável, talvez por associação après coup, com a insolação que o Duto teve na noite do primeiro ou segundo dia. Havia algum tipo de falta de comida, e minha mãe comprou carne de cavalo, que em nossa imaginação tinha gosto de carne de baleia. Ou seria de baleia mesmo? O Zoológico onde fomos passear pareceu longe demais, perto de um lugar cujo nome era um parente da Real Grandeza: a Quinta da Boa Vista. Nomes, cheiros: será feita disso a memória que impregna para sempre nossa relação com os lugares? Será feito disso o vasto amor com que nos impregna o mundo?
Seus poemas podem me responder isso.
Um beijo, Rita