Uma estética do assombro

Por dentro do acervo

24.06.13

Marcello Grassmann, um dos artistas plásticos brasileiros mais premiados, tanto nacional quanto internacionalmente, faleceu na última sexta-feira, aos 87 anos. Para homenageá-lo, reproduzimos o texto de apresentação escrito por Ferreira Gullar para o catálogo da exposição promovida pelo Instituto Moreira Salles na ocasião dos 80 anos do artista, em 2006. O IMS conta com um acervo de cerca de 55 obras de Grassmann, entre desenhos e gravuras.

Sem título, 2005.

Sem título, 2005.

Uma estética do assombro

Ferreira Gullar


Nascido em 1925 na cidade de São Simão, interior de São Paulo, Marcello Grassmann mudou-se bem jo­vem para a capital do Estado. Depois de estudar fundicão, mecânica e entalhe na Escola Técnica Getúlio Var­gas, passou a fazer xilogravuras. Em 1939, já no Rio de Janeiro, matriculou-se no Liceu de Artes e Ofícios, onde começou a aprender gravura em metal.

Esses dados biográficos podem ou não servir para ex­plicar o surgimento do desenhista e gravador Marcello Grassmann. De qualquer modo, já que somos, pelo me­nos em parte, consequência do que aprendemos e vive­mos, talvez deva-se admitir que, de alguma maneira, aquele curso de fundição e mecânica teria influído na for­mação do futuro artista-artesão. Mas, se isso é verdade ou não, fica ao sabor do que imaginarmos, já que é im­possível precisar quais fatores contribuem para que urna personalidade se forme, ou, melhor dizendo, se invente.

Atrevo-me a dizer, no entanto, ainda que pareça óbvio, que o fator determinante que fez de Marcello Grassmann o artista que é nasceu com ele, e não se sa­be que fator é esse. Isso não significa que ele teria fatal­mente de se tornar o gravador que é, uma vez que todas as pessoas são o que inventam ser, e essa invenção de si mesmo é, se se trata de um artista, a de uma linguagem que lhe possibilita criar um mundo imaginário. Só isso talvez explique por que Marcello Grassmann optou, como artista, por um caminho totalmente diferente do que seguiu a geração a que pertence, a qual, na década de 1950, começava sua carreira artística.

Sem título, 2004.

Sem título, 2004.

Aquele foi o momento de ruptura com a tradição modernista, quando a arte brasileira abandonou a temá­tica nacional, regional e figurativa, optando pela lingua­gem geométrica e impessoal da arte concreta. Na I Bie­nal de São Paulo, em 1951, o escultor Max Bill (1908-1994) ganhou o grande prêmio internacional do certame com a Unidade Tripartida, e o pintor Ivan Serpa (1923-1973) o prêmio de melhor artista jovem, com uma composi­ção geométrica. Era o sinal do novo tempo para a nossa arte, que assim rompia não apenas com o passado re­cente, mas também com uma secular vinculação à arte produzida em Paris. Se é verdade que Candido Portinari (1903-1962) e Di Cavalcanti (1897-1976) ainda preserva­vam seu prestígio no meio artístico, foram instantanea­mente deslocados, do mesmo modo que Oswaldo Goeldi (1895-1961) e Lívio Abramo (1903-1992), mestres da gra­vura, para o fundo da cena, para o “passado”, juntamente com todo um conjunto de valores políticos e culturais tornados subitamente anacrônicos com o fim da Segun­da Guerra Mundial. Uma nova era se iniciava ? acredi­tava-se ? com o reencontro dos povos que haviam der­rotado o nazifascismo. Era preciso enterrar o passado, e a Bienal de São Paulo surgia como expressão da nova época, caracterizada pela retomada do intercâmbio ar­tístico internacional.

Marcello Grassmann tinha 25 anos em 1950, mas não se deixou levar por aquele surto de renovação ou modernização da arte. Em 1952, expôs no salão do an­tigo MEC, no Rio de Janeiro, litografias cujos temas predominantes eram harpias, súcubos e íncubos, seres de um universo fantástico situados no polo oposto ao da arte geométrica. Eles tampouco tinham a ver com a herança modernista brasileira, que era, como se sabe, marcadamente nacional. Grassmann bebera noutra tra­dição, muito mais antiga, desvinculada da modernidade, como a arte delirante de Hieronymus Bosch (1450-1516), com seus seres híbridos de gente e bicho, animais me­nos da natureza que da imaginação.

O curso seguido pela arte brasileira, a partir daque­la ruptura ? de que nasceram o concretismo e o neo­concretismo ?, derivou da linguagem geométrica para a pintura gestual (tachismo e informalismo) e desem­bocou, mais tarde, no estuário comum da arte concei­tual. Enquanto isso, Grassmann dava desdobramento à sua arte, alheio às ideias e manifestos que marcaram o curso das tendências predominantes. Examinados os diferentes movimentos surgidos naquelas décadas, po­de-se ver que a racionalidade da arte construtiva deu lugar a um subjetivismo exacerbado e, em alguns casos, ao automatismo do gesto que pretendia burlar a luci­dez e pôr à mostra o inconsciente insondável. Não obs­tante, essa subjetividade nada tem a ver com a de Mar­cello Grassmann, já que é “abstrata”, expressa não por meio de símbolos figurativos, de imagens, mas de man­chas e garatujas que nada representam senão um supos­to universo inconsciente e indecifrável. Em última ins­tância, uma espécie de revelação de uma verdade que não pode ser expressa através de imagens figurativas. Essa seria uma subjetividade nova, limpa de conotações místicas, míticas ou simbólicas; uma subjetividade in­transcendente, sujeita ao imediato das sensações.

Sem título, 1991.

Sem título, 1991.

A arte de Marcello Grassmann está no polo oposto a essa abstração, que resultara da desintegração da lin­guagem figurativa. A subjetividade que se expressa por meio das gravuras do artista mergulha, pelo contrário, na herança de símbolos figurativos que constituem a corrente milenar da expressão gráfica, tanto faz se co­mo pintura, escultura, relevo, desenho ou gravura. De­vo observar, no entanto, que tal mergulho não signifi­ca a mera adesão do artista às formas tradicionais desse universo figurativo. Pelo contrário, ao mergulhar nele, Grassmann estabelece, com suas imagens e significa­dos, um diálogo que o recupera e renova. Isso significa que, na sua arte, aqueles elementos expressivos, sem perderem o vínculo com um universo arcaico, valem-se dessas propriedades para se reintegrarem em nossa atualidade psicossocial. As imagens de cavaleiros me­dievais, de lança e armadura, junto com donzelas e gri­fos, tornam-se veículos de comunicação entre o univer­so arcaico e a sensibilidade moderna. Aí está a chave da própria arte de Grassmann, que nega os aspectos exte­riores da modernidade e, ao mesmo tempo, afirma-a ao nível da expressão estética. Noutras palavras, jamais se encontrará num de seus desenhos ou numa de suas gra­vuras a imagem de um automóvel, de um avião, nem mesmo de uma mulher vestida como uma dançarina de cancã ou como uma melindrosa; tampouco encon­traremos neles a figura de um santo ou de um anjo afá­vel. Nunca, porque eles estão povoados de seres extra­vagantes, às vezes malditos e malignos, habitantes de uma dimensão onde a fantasia se confunde com o pe­sadelo. Mas isso não seria suficiente para torná-los atuais: o que assim os torna é a linguagem gráfica que os constitui, de que nascem de modo imprevisível.

Trata-se de uma reinvenção moderna do desenho, di­ferente de como o consideravam os herdeiros da estética renascentista que adquiriria, no século XIX, depuração requintada nas obras de Ingres (1780-1867). A saturação provocada pelo academicismo levou os artistas a desco­brirem a beleza do inacabado, do esboço, do estudo. A linha deixa de ser apenas contorno para se tornar ela mesma expressão enquanto linha. E em Marcello Grassmann, em determinados momentos, o desenho se torna um emaranhado de traços, e desse emaranhado, como do caos, nasce a figura; o emaranhado ganha olhos, vive, ganha rosto, máscara, ganha dedos, garras, presas, patas, rabo. Alguns desenhos beiram uma espécie de desorde­nação deliberada, numa dialética da ordem e da desor­dem, que não é a mesma coisa que a do acabado e do inacabado, sempre presente no traçar das figuras; agora, trata-se da desordenação da composição, vinculada a uma população de seres que nascem do abismo gráfico, do sortilégio das linhas. Essa é uma relação nova do artis­ta com a linguagem e o objeto: a linguagem já não pre­tende que o desenho seja a coisa. Ao contrário, a coisa representada mostra-se puro desenho, pertence à dimen­são gráfica, “habitada” por todo e qualquer tipo de seres, desde o homens de armadura e capacete adornado até demônios e sáurios. Alguns desses seres Grassmann os conheceu na obra de Hieronymus Bosch, mas foram por ele assimilados, desfeitos e mudados em linhas, rabiscos, manchas, treva e luz, e assim reinventados.

Entrada da chácara do artista nos arredores de São Paulo, 1985.

Entrada da chácara do artista nos arredores de São Paulo, 1985.

O significado moderno do inacabado está em mostrar que a figura desenhada (ou gravada) não é a realidade, imitação dela: é invenção gráfica. É, por assim dizer, um retorno à origem: a figura se dissolve, se desfaz em sua matéria ? traço, linhas, manchas ? e renasce dela, como Fênix, mas desmistificada: não é mais fingimento de rea­lidade, é coisa gráfica, trabalho humano, hesitante, in­concluso, tateante, que não se sabe antes de concluir-se, como a mostrar que não quer ser senão desenho, realida­de inventada pelas linhas, produto da fantasia ? invenção. Essa é a maneira moderna de renovar a ilusão do figurati­vismo: mostrar que a figura desenhada é apenas desenho, e não realidade; ou seja, é realidade inventada pelo artista ? o desenho deixa de ser imitação para se tornar criação, realidade gráfica. Ao mesmo tempo, mostra que não é a transcrição de uma ideia já pronta, mas uma invenção que nasce no papel, naquele instante, na precariedade do im­proviso e guiada pela lucidez que aprova ou corrige.

Não há, portanto, uma concepção a priori da obra: a impressão que se tem é de que o desenho surge de um detalhe ? por exemplo, um rosto de mulher ? que atrai outra figura ? por exemplo, uma cabeça animal ? a que depois se junta outra figura feminina, esta, ao contrá­rio das anteriores, feita de simples contorno, sem mas­sa ou volume, só linhas. O jogo de recursos expressivos é comum a todos os desenhos em diferentes proporções e maneiras, o que contribui para imprimir a essas obras o aspecto de esboço e improviso, aliado a uma rara in­tensidade expressiva.

Noutro plano, observa-se como característica dos desenhos mais recentes de Grassmann o predomínio do erotismo, expresso na figura de mulheres nuas, de seios e, às vezes, de sexo à mostra. Um erotismo que não explora a beleza física da mulher, mas a sua sexualidade, sua eroticidade natural, corporal. Na verdade, aqui, o artista substitui a visão convencional da mulher idealizada na figura clássica da Vênus por outra, que elege a “feiura” como expressão erótica.

Outro dado que chama a atenção é a presença de um animal estranho ao lado da mulher, como a revelar a animalidade de seu erotismo. Às vezes é uma cabeça de cavalo ou de bode, de um diabo ou de uma besta es­tranha, não identificável. Esses seres, em alguns casos, parecem tentar a mulher, seduzi-la; noutros, estão sim­plesmente a seu lado, como se fizessem parte de seu co­tidiano, de seu convívio. Ou também podem parecer, pelo jogo de luz e treva, uma espécie de alter ego ? ani­mal que dorme na pessoa.

Sem título, 1996.

Sem título, 1996.

Invenção. Isso significa que o artista expressa no que desenha ou pinta seu mundo interior? Será que aqueles cavaleiros e demônios, peixes, bodes, lagartos, existem dentro de Grassmann? E que seus desenhos e gravuras são a exteriorização de uma realidade infernal que o ha­bita? Creio que não, porque, se existisse, em que consis­tiria? Objetivamente, em nada ou quase nada: ideias, pensamentos, aspirações, impulsos, medos. Na verdade, trata-se possivelmente de um “estado de alma”, uma predisposição psíquica, mais do que qualquer outra coi­sa. Logo, a obra não é a expressão, e sim a invenção des­se mundo interior.

Temos, ao lado, uma gravura de fundo verde mostran­do o busto de um cavaleiro. Ele tem a beleza de um prín­cipe ou de um deus, mas sobre sua cabeça está montado um pequeno diabo e, coroando-a, os chifres e a caveira de um talvez fauno. O cavaleiro segura uma seta ? seria ele um arqueiro? ?, tem os ombros largos de um atleta meti­do numa armadura. Todo o conjunto ? incluindo os chi­fres e o olhar iluminado do arqueiro ? é de extraordinária e eloquente beleza. Uma beleza maligna. Qual a significa­ção dessa imagem de homem belo e olhar puro, mas en­volto numa simbologia satânica? Não se sabe. Mas o que temos diante dos olhos é uma das coisas mais belas que a gravura brasileira já produziu.

Na arte de Grassmann há uma estranha mistura de treva e luz, de maldição e pureza, como se tudo o que a com­põe nascesse da treva. São seres noturnos os que povoam o seu universo, animais inventados ou reinventados, sejam la­gartos e sáurios, bodes ou figuras humanas monstruosas, ca­beças de carneiros ou de demônios. Diz-se que sua arte tem raízes no gótico, talvez por sua afinidade com o mundo noturno das gárgulas e harpias. De fato, sua linguagem de formas suntuosas e caprichosas, de um luxo noturno, mas ostentatório e rico de adorno e detalhes, é sobretudo bar­roco. Ele está mais perto de Rembrandt, com seus capace­tes fulgurantes e suas orquestrações de treva e claridade, do que do vocabulário ascético do gótico, de que herdou, no entanto, uma espécie de “realismo” brilhante e rico.

Sem título, 1988.

Sem título, 1988.

Marcello Grassmann disse, certa vez, que sua arte era mais realista que a de Goeldi, o que à primeira vis­ta parece uma afirmação sem propósito. É que logo nos vêm à mente as paisagens urbanas das gravuras goeldia­nas, seus pescadores e peixes cortados ao meio na pei­xaria: imagens do mundo real, cotidiano, enquanto as figuras de Grassmann pertencem ao mundo imaginário habitado por cavaleiros medievais e animais inventados. Não obstante, essas figuras têm um grau de “reali­dade” que não se vê nos casarios e pescadores de Goeldi, levados a uma simplificação formal que os abstratiza, excluindo deles os traços realistas que definem as for­mas naturais. Já os cavaleiros, mulheres e bichos de Grassmann estão contraditoriamente impregnados de realismo: seja o rosto dos cavaleiros harmoniosos e se­dutores, seja a figura de um peixe com sua mandíbula musculosa e seus dentes agudos, expressão de poderosa animalidade. E nesse particular devemos dar atenção aos olhos, tanto das figuras humanas quanto dos ani­mais e seres monstruosos: são eles que imprimem rea­lidade ? e até estranha humanidade ? aos seres fantás­ticos do mundo grassmanniano.

A malignidade que parece impregnar as figuras desse universo imaginário não exclui, muitas vezes, extraordi­nária delicadeza e requinte, como, por exemplo, na gra­vura abaixo, em que dois cavaleiros, de armadura e capa­cete, parecem arrastar para as profundezas da noite uma figura angelical de adolescente, enquanto seus capacetes cobertos de adornos relampejam no escuro como joias negras. Tais contrastes parecem constituir a matéria poético-semântica dessa arte noturna, em que a beleza é sinistra, e os demônios, irresistivelmente sedutores. Vem daí a poderosa carga expressiva de suas gravuras e dese­nhos. Costumo dizer que fazer arte é soprar espírito na matéria. Daí vem a conclusão de que o artista terá mais êxito quanto mais de “espírito” ? ou de expressão ? im­pere em sua obra: o ideal será que, na obra, toda a ma­téria se transforme em espírito, em “poesia”, e nada res­te de material, de resistente à percepção. Ou seja, a obra deve ser integralmente absorvida pelos sentidos. Grassmann, em seus melhores momentos ? ou quase sempre ?, alcança esse nível de transmutação da maté­ria em expressão. Entenda-se que, quando falo em “ma­téria”, refiro-me aos elementos sensoriais todos, ou seja, ao próprio objeto, ao desenho, à gravura. São matéria, nesse sentido, não apenas as linhas, os planos, o negro, a luz, as próprias figuras, enfim, tudo o que se percebe. A obra estará tanto mais plenamente realizada quanto menos resistência esses elementos ofereçam à percepção do espectador. A obra-prima não deixa resto.

Marcello Grassmann. Sem título, 1986.

Sem título, 1986.

Por fim, um traço também marcante de seus desenhos e gravuras é o impacto. A obra é concebida como uma re­velação, uma figura ou uma cena inusitada que nos arranca da indiferença, da visão acomodada e habitual. Na obra de Marcello Grassmann, não há nada que nos deixe indiferentes. Em maior ou menor grau, com maior ou menor intensidade, a busca do inusitado, do inesperado, é inerente à criação artística, se a entendemos como o lu­gar onde ocorre o espanto, o maravilhoso, o inesperado ou qualquer que seja o nome que se queira dar ao fenô­meno. É verdade também que, em cada artista, a busca do espanto se faz de maneira própria, e em muitos essa capacidade de surpreender diminui com o passar dos anos, quando arrefece nele a capacidade de criar ó inusi­tado. Isso não acontece com Grassmann, que há sessenta anos continua a nos surpreender e emocionar. E o que mais intriga é que ele o consegue sem se render à frenéti­ca busca da novidade que caracteriza a maior parte dos ar­tistas contemporâneos. Versa praticamente uma mesma temática integrada num mesmo universo gráfico. Nesse particular, o seu exemplo contém uma lição fundamen­tal: a de que o novo autêntico pode surgir da exploração e elaboração de uns mesmos elementos poéticos, figura­tivos, gráficos, visuais.

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