Uma estética do assombro
Ferreira Gullar
Nascido em 1925 na cidade de São Simão, interior de São Paulo, Marcello Grassmann mudou-se bem jovem para a capital do Estado. Depois de estudar fundicão, mecânica e entalhe na Escola Técnica Getúlio Vargas, passou a fazer xilogravuras. Em 1939, já no Rio de Janeiro, matriculou-se no Liceu de Artes e Ofícios, onde começou a aprender gravura em metal.
Esses dados biográficos podem ou não servir para explicar o surgimento do desenhista e gravador Marcello Grassmann. De qualquer modo, já que somos, pelo menos em parte, consequência do que aprendemos e vivemos, talvez deva-se admitir que, de alguma maneira, aquele curso de fundição e mecânica teria influído na formação do futuro artista-artesão. Mas, se isso é verdade ou não, fica ao sabor do que imaginarmos, já que é impossível precisar quais fatores contribuem para que urna personalidade se forme, ou, melhor dizendo, se invente.
Atrevo-me a dizer, no entanto, ainda que pareça óbvio, que o fator determinante que fez de Marcello Grassmann o artista que é nasceu com ele, e não se sabe que fator é esse. Isso não significa que ele teria fatalmente de se tornar o gravador que é, uma vez que todas as pessoas são o que inventam ser, e essa invenção de si mesmo é, se se trata de um artista, a de uma linguagem que lhe possibilita criar um mundo imaginário. Só isso talvez explique por que Marcello Grassmann optou, como artista, por um caminho totalmente diferente do que seguiu a geração a que pertence, a qual, na década de 1950, começava sua carreira artística.
Aquele foi o momento de ruptura com a tradição modernista, quando a arte brasileira abandonou a temática nacional, regional e figurativa, optando pela linguagem geométrica e impessoal da arte concreta. Na I Bienal de São Paulo, em 1951, o escultor Max Bill (1908-1994) ganhou o grande prêmio internacional do certame com a Unidade Tripartida, e o pintor Ivan Serpa (1923-1973) o prêmio de melhor artista jovem, com uma composição geométrica. Era o sinal do novo tempo para a nossa arte, que assim rompia não apenas com o passado recente, mas também com uma secular vinculação à arte produzida em Paris. Se é verdade que Candido Portinari (1903-1962) e Di Cavalcanti (1897-1976) ainda preservavam seu prestígio no meio artístico, foram instantaneamente deslocados, do mesmo modo que Oswaldo Goeldi (1895-1961) e Lívio Abramo (1903-1992), mestres da gravura, para o fundo da cena, para o “passado”, juntamente com todo um conjunto de valores políticos e culturais tornados subitamente anacrônicos com o fim da Segunda Guerra Mundial. Uma nova era se iniciava ? acreditava-se ? com o reencontro dos povos que haviam derrotado o nazifascismo. Era preciso enterrar o passado, e a Bienal de São Paulo surgia como expressão da nova época, caracterizada pela retomada do intercâmbio artístico internacional.
Marcello Grassmann tinha 25 anos em 1950, mas não se deixou levar por aquele surto de renovação ou modernização da arte. Em 1952, expôs no salão do antigo MEC, no Rio de Janeiro, litografias cujos temas predominantes eram harpias, súcubos e íncubos, seres de um universo fantástico situados no polo oposto ao da arte geométrica. Eles tampouco tinham a ver com a herança modernista brasileira, que era, como se sabe, marcadamente nacional. Grassmann bebera noutra tradição, muito mais antiga, desvinculada da modernidade, como a arte delirante de Hieronymus Bosch (1450-1516), com seus seres híbridos de gente e bicho, animais menos da natureza que da imaginação.
O curso seguido pela arte brasileira, a partir daquela ruptura ? de que nasceram o concretismo e o neoconcretismo ?, derivou da linguagem geométrica para a pintura gestual (tachismo e informalismo) e desembocou, mais tarde, no estuário comum da arte conceitual. Enquanto isso, Grassmann dava desdobramento à sua arte, alheio às ideias e manifestos que marcaram o curso das tendências predominantes. Examinados os diferentes movimentos surgidos naquelas décadas, pode-se ver que a racionalidade da arte construtiva deu lugar a um subjetivismo exacerbado e, em alguns casos, ao automatismo do gesto que pretendia burlar a lucidez e pôr à mostra o inconsciente insondável. Não obstante, essa subjetividade nada tem a ver com a de Marcello Grassmann, já que é “abstrata”, expressa não por meio de símbolos figurativos, de imagens, mas de manchas e garatujas que nada representam senão um suposto universo inconsciente e indecifrável. Em última instância, uma espécie de revelação de uma verdade que não pode ser expressa através de imagens figurativas. Essa seria uma subjetividade nova, limpa de conotações místicas, míticas ou simbólicas; uma subjetividade intranscendente, sujeita ao imediato das sensações.
A arte de Marcello Grassmann está no polo oposto a essa abstração, que resultara da desintegração da linguagem figurativa. A subjetividade que se expressa por meio das gravuras do artista mergulha, pelo contrário, na herança de símbolos figurativos que constituem a corrente milenar da expressão gráfica, tanto faz se como pintura, escultura, relevo, desenho ou gravura. Devo observar, no entanto, que tal mergulho não significa a mera adesão do artista às formas tradicionais desse universo figurativo. Pelo contrário, ao mergulhar nele, Grassmann estabelece, com suas imagens e significados, um diálogo que o recupera e renova. Isso significa que, na sua arte, aqueles elementos expressivos, sem perderem o vínculo com um universo arcaico, valem-se dessas propriedades para se reintegrarem em nossa atualidade psicossocial. As imagens de cavaleiros medievais, de lança e armadura, junto com donzelas e grifos, tornam-se veículos de comunicação entre o universo arcaico e a sensibilidade moderna. Aí está a chave da própria arte de Grassmann, que nega os aspectos exteriores da modernidade e, ao mesmo tempo, afirma-a ao nível da expressão estética. Noutras palavras, jamais se encontrará num de seus desenhos ou numa de suas gravuras a imagem de um automóvel, de um avião, nem mesmo de uma mulher vestida como uma dançarina de cancã ou como uma melindrosa; tampouco encontraremos neles a figura de um santo ou de um anjo afável. Nunca, porque eles estão povoados de seres extravagantes, às vezes malditos e malignos, habitantes de uma dimensão onde a fantasia se confunde com o pesadelo. Mas isso não seria suficiente para torná-los atuais: o que assim os torna é a linguagem gráfica que os constitui, de que nascem de modo imprevisível.
Trata-se de uma reinvenção moderna do desenho, diferente de como o consideravam os herdeiros da estética renascentista que adquiriria, no século XIX, depuração requintada nas obras de Ingres (1780-1867). A saturação provocada pelo academicismo levou os artistas a descobrirem a beleza do inacabado, do esboço, do estudo. A linha deixa de ser apenas contorno para se tornar ela mesma expressão enquanto linha. E em Marcello Grassmann, em determinados momentos, o desenho se torna um emaranhado de traços, e desse emaranhado, como do caos, nasce a figura; o emaranhado ganha olhos, vive, ganha rosto, máscara, ganha dedos, garras, presas, patas, rabo. Alguns desenhos beiram uma espécie de desordenação deliberada, numa dialética da ordem e da desordem, que não é a mesma coisa que a do acabado e do inacabado, sempre presente no traçar das figuras; agora, trata-se da desordenação da composição, vinculada a uma população de seres que nascem do abismo gráfico, do sortilégio das linhas. Essa é uma relação nova do artista com a linguagem e o objeto: a linguagem já não pretende que o desenho seja a coisa. Ao contrário, a coisa representada mostra-se puro desenho, pertence à dimensão gráfica, “habitada” por todo e qualquer tipo de seres, desde o homens de armadura e capacete adornado até demônios e sáurios. Alguns desses seres Grassmann os conheceu na obra de Hieronymus Bosch, mas foram por ele assimilados, desfeitos e mudados em linhas, rabiscos, manchas, treva e luz, e assim reinventados.
O significado moderno do inacabado está em mostrar que a figura desenhada (ou gravada) não é a realidade, imitação dela: é invenção gráfica. É, por assim dizer, um retorno à origem: a figura se dissolve, se desfaz em sua matéria ? traço, linhas, manchas ? e renasce dela, como Fênix, mas desmistificada: não é mais fingimento de realidade, é coisa gráfica, trabalho humano, hesitante, inconcluso, tateante, que não se sabe antes de concluir-se, como a mostrar que não quer ser senão desenho, realidade inventada pelas linhas, produto da fantasia ? invenção. Essa é a maneira moderna de renovar a ilusão do figurativismo: mostrar que a figura desenhada é apenas desenho, e não realidade; ou seja, é realidade inventada pelo artista ? o desenho deixa de ser imitação para se tornar criação, realidade gráfica. Ao mesmo tempo, mostra que não é a transcrição de uma ideia já pronta, mas uma invenção que nasce no papel, naquele instante, na precariedade do improviso e guiada pela lucidez que aprova ou corrige.
Não há, portanto, uma concepção a priori da obra: a impressão que se tem é de que o desenho surge de um detalhe ? por exemplo, um rosto de mulher ? que atrai outra figura ? por exemplo, uma cabeça animal ? a que depois se junta outra figura feminina, esta, ao contrário das anteriores, feita de simples contorno, sem massa ou volume, só linhas. O jogo de recursos expressivos é comum a todos os desenhos em diferentes proporções e maneiras, o que contribui para imprimir a essas obras o aspecto de esboço e improviso, aliado a uma rara intensidade expressiva.
Noutro plano, observa-se como característica dos desenhos mais recentes de Grassmann o predomínio do erotismo, expresso na figura de mulheres nuas, de seios e, às vezes, de sexo à mostra. Um erotismo que não explora a beleza física da mulher, mas a sua sexualidade, sua eroticidade natural, corporal. Na verdade, aqui, o artista substitui a visão convencional da mulher idealizada na figura clássica da Vênus por outra, que elege a “feiura” como expressão erótica.
Outro dado que chama a atenção é a presença de um animal estranho ao lado da mulher, como a revelar a animalidade de seu erotismo. Às vezes é uma cabeça de cavalo ou de bode, de um diabo ou de uma besta estranha, não identificável. Esses seres, em alguns casos, parecem tentar a mulher, seduzi-la; noutros, estão simplesmente a seu lado, como se fizessem parte de seu cotidiano, de seu convívio. Ou também podem parecer, pelo jogo de luz e treva, uma espécie de alter ego ? animal que dorme na pessoa.
Invenção. Isso significa que o artista expressa no que desenha ou pinta seu mundo interior? Será que aqueles cavaleiros e demônios, peixes, bodes, lagartos, existem dentro de Grassmann? E que seus desenhos e gravuras são a exteriorização de uma realidade infernal que o habita? Creio que não, porque, se existisse, em que consistiria? Objetivamente, em nada ou quase nada: ideias, pensamentos, aspirações, impulsos, medos. Na verdade, trata-se possivelmente de um “estado de alma”, uma predisposição psíquica, mais do que qualquer outra coisa. Logo, a obra não é a expressão, e sim a invenção desse mundo interior.
Temos, ao lado, uma gravura de fundo verde mostrando o busto de um cavaleiro. Ele tem a beleza de um príncipe ou de um deus, mas sobre sua cabeça está montado um pequeno diabo e, coroando-a, os chifres e a caveira de um talvez fauno. O cavaleiro segura uma seta ? seria ele um arqueiro? ?, tem os ombros largos de um atleta metido numa armadura. Todo o conjunto ? incluindo os chifres e o olhar iluminado do arqueiro ? é de extraordinária e eloquente beleza. Uma beleza maligna. Qual a significação dessa imagem de homem belo e olhar puro, mas envolto numa simbologia satânica? Não se sabe. Mas o que temos diante dos olhos é uma das coisas mais belas que a gravura brasileira já produziu.
Na arte de Grassmann há uma estranha mistura de treva e luz, de maldição e pureza, como se tudo o que a compõe nascesse da treva. São seres noturnos os que povoam o seu universo, animais inventados ou reinventados, sejam lagartos e sáurios, bodes ou figuras humanas monstruosas, cabeças de carneiros ou de demônios. Diz-se que sua arte tem raízes no gótico, talvez por sua afinidade com o mundo noturno das gárgulas e harpias. De fato, sua linguagem de formas suntuosas e caprichosas, de um luxo noturno, mas ostentatório e rico de adorno e detalhes, é sobretudo barroco. Ele está mais perto de Rembrandt, com seus capacetes fulgurantes e suas orquestrações de treva e claridade, do que do vocabulário ascético do gótico, de que herdou, no entanto, uma espécie de “realismo” brilhante e rico.
Marcello Grassmann disse, certa vez, que sua arte era mais realista que a de Goeldi, o que à primeira vista parece uma afirmação sem propósito. É que logo nos vêm à mente as paisagens urbanas das gravuras goeldianas, seus pescadores e peixes cortados ao meio na peixaria: imagens do mundo real, cotidiano, enquanto as figuras de Grassmann pertencem ao mundo imaginário habitado por cavaleiros medievais e animais inventados. Não obstante, essas figuras têm um grau de “realidade” que não se vê nos casarios e pescadores de Goeldi, levados a uma simplificação formal que os abstratiza, excluindo deles os traços realistas que definem as formas naturais. Já os cavaleiros, mulheres e bichos de Grassmann estão contraditoriamente impregnados de realismo: seja o rosto dos cavaleiros harmoniosos e sedutores, seja a figura de um peixe com sua mandíbula musculosa e seus dentes agudos, expressão de poderosa animalidade. E nesse particular devemos dar atenção aos olhos, tanto das figuras humanas quanto dos animais e seres monstruosos: são eles que imprimem realidade ? e até estranha humanidade ? aos seres fantásticos do mundo grassmanniano.
A malignidade que parece impregnar as figuras desse universo imaginário não exclui, muitas vezes, extraordinária delicadeza e requinte, como, por exemplo, na gravura abaixo, em que dois cavaleiros, de armadura e capacete, parecem arrastar para as profundezas da noite uma figura angelical de adolescente, enquanto seus capacetes cobertos de adornos relampejam no escuro como joias negras. Tais contrastes parecem constituir a matéria poético-semântica dessa arte noturna, em que a beleza é sinistra, e os demônios, irresistivelmente sedutores. Vem daí a poderosa carga expressiva de suas gravuras e desenhos. Costumo dizer que fazer arte é soprar espírito na matéria. Daí vem a conclusão de que o artista terá mais êxito quanto mais de “espírito” ? ou de expressão ? impere em sua obra: o ideal será que, na obra, toda a matéria se transforme em espírito, em “poesia”, e nada reste de material, de resistente à percepção. Ou seja, a obra deve ser integralmente absorvida pelos sentidos. Grassmann, em seus melhores momentos ? ou quase sempre ?, alcança esse nível de transmutação da matéria em expressão. Entenda-se que, quando falo em “matéria”, refiro-me aos elementos sensoriais todos, ou seja, ao próprio objeto, ao desenho, à gravura. São matéria, nesse sentido, não apenas as linhas, os planos, o negro, a luz, as próprias figuras, enfim, tudo o que se percebe. A obra estará tanto mais plenamente realizada quanto menos resistência esses elementos ofereçam à percepção do espectador. A obra-prima não deixa resto.
Por fim, um traço também marcante de seus desenhos e gravuras é o impacto. A obra é concebida como uma revelação, uma figura ou uma cena inusitada que nos arranca da indiferença, da visão acomodada e habitual. Na obra de Marcello Grassmann, não há nada que nos deixe indiferentes. Em maior ou menor grau, com maior ou menor intensidade, a busca do inusitado, do inesperado, é inerente à criação artística, se a entendemos como o lugar onde ocorre o espanto, o maravilhoso, o inesperado ou qualquer que seja o nome que se queira dar ao fenômeno. É verdade também que, em cada artista, a busca do espanto se faz de maneira própria, e em muitos essa capacidade de surpreender diminui com o passar dos anos, quando arrefece nele a capacidade de criar ó inusitado. Isso não acontece com Grassmann, que há sessenta anos continua a nos surpreender e emocionar. E o que mais intriga é que ele o consegue sem se render à frenética busca da novidade que caracteriza a maior parte dos artistas contemporâneos. Versa praticamente uma mesma temática integrada num mesmo universo gráfico. Nesse particular, o seu exemplo contém uma lição fundamental: a de que o novo autêntico pode surgir da exploração e elaboração de uns mesmos elementos poéticos, figurativos, gráficos, visuais.