Não terá sido apenas pela reconhecida devoção a Os sertões que o jornalista Olimpio de Souza Andrade se ocupou da transcrição integral, anotada, da caderneta em que Euclides da Cunha registrou o cotidiano dos 18 dias em que esteve à frente da batalha de Canudos.
Sob o título Caderneta de campo, o livro, considerado a gênese de Os sertões, mereceu copiosas notas de Souza Andrade, o organizador. Ao publicá-lo, em 1975, ele enviou um exemplar a Carlos Drummond de Andrade, que, em carta de agradecimento, não poupou elogios: “Essa Caderneta, então, põe a gente emocionada, e a emoção é dupla: revive-se o dia a dia do escritor/repórter e sente-se a amorosa vigília do seu devoto estudioso a decifrar no microfilme, sem pressa e sem pausa, a miúda caligrafia dos apontamentos originais”.
Muitos anos antes de se dedicar aos estudos euclidianos, Olimpio de Souza Andrade, nascido na fazenda Fartura, em São José do Rio Pardo (SP), no ano de 1914, já demonstrara interesse por diário. Ele mesmo escrevera o seu, felizmente em letra não tão miúda quanto a de Euclides, em sete cadernos escolares, sob o título “Uma praça de guerra”.
Esse material, somado à abundante documentação relativa à obra euclidiana e a outros itens, como as cartas de Drummond, integra o acervo de Olimpio, sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 2007.
Curiosamente, como se lê no título, o diário do estudante reportava-se também a uma revolução. Aos 18 anos de idade, morador da cidadezinha paulista de Casa Branca, Olimpio anotou o que vivenciou durante o conflito que entraria para a história como a Guerra Paulista ou Revolução Constitucionalista de 1932.
No período de 9 de julho a 4 de outubro daquele ano, período de duração da guerra, Souza Andrade registrou a movimentação no povoado que seu bisavô, o coronel Antonio Marçal Nogueira de Barros, reunira a outros, vizinhos, para em 1870 fundar a cidade de São José do Rio Pardo, onde, como já se disse, nasceria o neto.
Como não podia deixar de ser, o diário revela o entusiasmo com que o jovem vivia aquele momento em que São Paulo repudiava a continuidade da ditadura Vargas e exigia uma constituinte com base nos princípios da democracia liberal. De nada adiantou a nomeação do interventor civil e paulista Pedro de Toledo para o Estado: sem perspectivas de eleições e sem o apoio do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, a que se ligara, São Paulo, isolado, contou apenas com a sua própria milícia estadual e com intensa mobilização popular para enfrentar as forças federais na revolução que terminou com a rendição dos revoltosos e que no próximo 9 de julho completa 80 anos.
A página do caderno de Olimpio que se reproduz aqui traduz um flagrante na estação de trem de Casa Branca, onde cada jovem dava sua cota de heroísmo ao embarcar com destino à luta.
Esta é a transcrição da página:
Era meio-dia! Grande massa já se estacionava defronte à Casa Renascença, era dali que sairiam os valentes moços casa-branquenses em busca de um fuzil para velar do pedaço de terra paulista que lhe fosse confiado? A banda de música também lá estava.
Romperam a marcha? e subiram perto de quarenta moços, sob o comando de Yolando Basilone, depois tenente que muito fez pela causa no setor sul.
Na estação a azáfama era enorme! Quem chegasse pouco depois do povo que acompanhava os voluntários não mais conseguiria penetrar na gare da Mogiana. Todos falavam, todos exaltavam os méritos daqueles bravos rapazes, mas? nem todos poderiam seguir, embora o desejo e a obrigação os impelissem!
Chegara o trem de Ribeirão Preto que seguia para Campinas! Este trem é que levaria os voluntários; aí então deu-se lugar às despedidas? Na hora que abracei o Luiz ele me disse: “Olímpio, até por lá se for necessário!” – “Sim, até por lá” – respondi-lhe! O trem apitou, suas rodas rangeram, começaram rodar, pegou mais velocidade e sumiu-se na curva!? Todos com ar meio triste, meio alegre; desceram vendo como quem quer ver mas não vê as mãos abanando e rostos risonhos dos rapazes que se foram?
Na mesma São José do Rio Pardo onde nasceu Olimpio de Souza Andrade chegaria, em 1896, o engenheiro militar Euclides da Cunha, com a missão de fiscalizar a ponte metálica sobre o rio que a batiza. Desviado pelo O Estado de S. Paulo, em 1897, para fazer a cobertura da guerra em que o Exército brasileiro resolveu avançar contra aquele “imenso lar sem teto”, como chamaria Euclides ao povoado baiano de Canudos, ele voltaria a São José no ano seguinte para retomar a fiscalização da ponte metálica, que desabara.
Mas a guerra mudara a sua vida e se convertia em tema para engrandecer a literatura brasileira: na cabana às margens do Rio Pardo ou à noite, em casa, ele escreveu Os sertões, lançado em 1902. Deixou plantada na cidade uma tradição que seria retomada por Olimpio de Souza Andrade, cujo inteletto damore, como chamou Drummond à sua inteligência amorosamente aplicada aos estudos euclidianos, muito contribuiria para enriquecer a leitura do clássico de Euclides da Cunha.
* Elvia Bezerra é coordenadora de literatura do Instituto Moreira Salles