Cinema das causas perdidas

Colunistas

17.02.16

Há uma grande diferença entre empatia e política no cinema. É uma diferença que Brecht explicou muito bem na oposição entre teatro dramático e teatro épico. O princípio da empatia é a passividade do espectador. Funciona tanto para a propaganda quanto para o filme de entretenimento. Ao contrário, o filme que pretende sacudir a consciência do espectador, seus valores e sua moral, tende a ser bem mais desconfortável.

Por exemplo: Você vai assistir a um filme que tem as melhores intenções (você sabe disso de antemão, tanto que decidiu comprar o ingresso), sobre um pintor dinamarquês que recorreu a uma operação de troca de sexo, em 1930, quando isso era praticamente inviável. Nem é preciso dizer que você é a favor da felicidade das pessoas, de que elas possam decidir sobre o próprio corpo e sobre o próprio sexo. O filme é baseado em uma história real, nos diários dessa precursora da luta pelo direito à mudança de sexo. Trata de um fato histórico e heroico que precede e anuncia uma situação cada vez mais incontornável e visível, a despeito da persistência dos preconceitos mais arraigados. É a chancela que faltava à causa dos transgêneros, “humanizados” e “normalizados” para o grande público, com a ajuda de um ator indicado ao Oscar e de uma produção das mais convencionais, capaz de fazer mães de família sair da sala com olhos marejados.

Não deixa de ser uma excelente iniciativa educacional, que vai ao encontro da demanda de um público relativamente tolerante, mas que também reduz o cinema a veículo da virtude das boas mensagens e da boa consciência, um gênero que dá ao espectador o que ele quer ver, da forma mais palatável possível, e que ao mesmo tempo contradiz em seu convencionalismo e em sua insipidez artística tanto o potencial contraditório e provocador da arte quanto o da luta. Um cinema de heróis excepcionais do passado tratados como vítimas para a catarse de olhos comovidos do presente; um cinema cujo objetivo não é desestabilizar nem pôr em dúvida, mas apaziguar e endossar as boas opiniões sobre as causas justas.

Nada a ver com o cinema político proposto pelo japonês Nagisa Oshima, em 1968, com O enforcamento (Koshikei), que eu nunca tinha visto e que baixei no computador antes de viajar para uma praia sem internet, no Carnaval. O filme é uma reflexão e uma alegoria contra a pena de morte num país (e numa época) em que a grande maioria da população é a favor da pena de morte. Mais do que isso, é um filme de gênero indefinido e que se reinventa a cada nova cena, num ritmo frenético, pondo em questão não só a pena de morte, o racismo e o imperialismo japonês, mas a própria ideia consensual de identidade e de nação. Ou seja, nada de empatia. É o cinema que quer fazer política com as causas perdidas, em campo minado, quer confrontar o espectador japonês com aquilo em que ele mais acredita: a farsa da identidade nacional.

O filme começa como um documentário. Guiada pela narração em off do diretor, uma câmera aérea se aproxima de um complexo penitenciário. Num dos cantos, uma casa insignificante, com teto de zinco, abriga a câmara de execução. A voz do diretor diz que 71% da população japonesa são a favor da pena de morte; 16% são contra e 13% não têm opinião formada, e pergunta: “Mas senhores e senhoras, quantos de vocês já viram uma câmara de execução? Quantos de vocês já presenciaram uma execução?”. A câmera entra na casa e a voz off prossegue, explicando ao espectador o que ele vê. Ali estão os funcionários prisionais, o capelão, o promotor, o médico-legista e o condenado. O espectador vai assistir, enfim, a uma execução.

O condenado recebe a extrema-unção (é cristão, filho de coreanos miseráveis – o Japão anexou a Coréia em 1910 e a manteve como colônia até 1945). O condenado é vendado, suas mãos são amarradas, ele começa a tremer, ou melhor, a chacoalhar. É conduzido até a forca, o laço é ajustado ao pescoço. As testemunhas se posicionam como espectadores em uma sala contígua. O alçapão é aberto, o corpo cai e fica pendurado até o médico vir decretar a morte. Mas o corpo não morre. O condenado está inconsciente, mas o corpo se recusa a ser executado. E aí, o que parecia documentário se transforma no teatro mais delirante, onde tudo é incerto.

A lei japonesa proíbe a execução de uma pessoa inconsciente, de modo que os funcionários prisionais têm de reanimar o condenado antes de submetê-lo a novo enforcamento. Quando volta a si, entretanto, o condenado já não sabe quem é nem onde está. O capelão se recusa a dar uma segunda extrema-unção e a  permitir que executem um corpo cuja alma já foi encomendada. E o promotor se recusa a executar um condenado que não tem consciência de si e que portanto já não é a mesma pessoa que cometeu os crimes. Começa então a farsa, uma reencenação da vida e dos atos cometidos pelo condenado, a fim de que ele se lembre, recobre a consciência e a identidade, e possa afinal ser executado pela segunda vez. Todos participam da reencenação (capelão, médico-legista, promotor etc.), trocando de identidade e assumindo as identidades do acusado, de sua família e de suas vítimas. Tudo gira em torno da fragilidade das identidades. E vai tudo pelos ares: raça, nação, crime. É a carnavalização da lei e do Estado japonês.

O protagonista é baseado em um personagem real, um estudante coreano condenado à morte alguns anos antes, por dois estupros seguidos de assassinatos. O espectador japonês conhece o caso e sabe que o protagonista é culpado, não existe a menor possibilidade de um equívoco da justiça, o que torna a argumentação do filme contra a pena de morte ainda mais difícil e radical. Não estamos diante de uma vítima inocente, de quem possamos nos condoer.

Oshima se serve das cartas que o condenado escreveu na prisão, e que foram publicadas com o título “Punição, morte e amor”, para questionar a própria noção de crime. E aproveita para fazer a apologia do cinema (contra o cinema hegemônico dos grandes estúdios) como um ato criminoso. Quer provocar no espectador uma interpretação dinâmica, em oposição ao mero consumismo.

O enforcamento é um filme estranhíssimo, desconfortável e surpreendente, que hoje seria impensável. É um filme profundamente político e provocador, artístico e autoral. Nada mais distante do cinema confortável e empático, da boa consciência, que pode até ajudar muita gente a se reconhecer, a se identificar e a aceitar; que pode até salvar vidas e contribuir para que a sociedade se livre de alguns de seus preconceitos, mas que dificilmente resultará em melhores filmes e em melhores espectadores.

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