Volto ao exemplar de Carta ao pai, de Kafka, publicado pela Companhia das Letras no já longínquo ano de 1997, em função do curso Remetente/Destinatário organizado por Eucanaã Ferraz. A aula a ser ministrada por Karl Erik Schøllhammer, professor e diretor do departamento de Letras da PUC-Rio, encerra o ciclo de oito encontros sobre grandes escritores/correspondentes da história literária moderna.
Ao retomar essa edição, logo penso no famoso ditado “não se julga o livro pela capa”. Com belíssima tradução de Modesto Carone, o autor de O processo começa o livro com o pé na porta:
Querido pai, você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. E se aqui tento responder por escrito, será sem dúvida de um modo muito incompleto, porque, também ao escrever, o medo e suas consequências me inibem diante de você e porque a magnitude do tema ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento.
Nas páginas seguintes, encontra-se um relato denso, emocionado, que expõe mais a confissão genuína de Kafka enquanto filho do que um projeto literário do escritor – que à época já havia publicado A metamorfose e Na colônia penal (ambos de 1914). Ele mesmo diz: “Meus escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que não podia fazer no seu peito”. Parece freudiano, e pode ser. Parece piegas, e de fato é.
Ainda que não soubesse que Kafka é um dos mais importantes autores no cenário da literatura moderna, é bem provável que essa edição – que a mim parece tão singular – atraísse aquela espécie de leitor que inicia sua leitura pelo que é anterior ao conteúdo, e, nesse caso, me refiro à própria ilustração da capa.
O quadrado preto possui uma pequena abertura do lado esquerdo que lembra a entrada de um labirinto onde o espaço branco funciona como convite-guia até a seguinte situação: uma faixa grossa, cuja base de pontas se assemelha a uma arcada dentária só de caninos, surge de cima corpulenta e opressiva. O oprimido, logo abaixo, é um traço fino que se salva do esmagamento por um mínimo espaço branco. Avançando no labirinto, o caminho fica cada vez mais estreito até que, sem opção, somos impelidos a subir por um bloco branco vertical dividido pelo meio por um traço preto – pesado – bem delineado. Não tem saída.
Como num rito de iniciação, o ilustrador Amilcar de Castro, de forma sutil e sagaz, antecipa ao leitor mais atento o conteúdo do livro: trama, drama, labirinto de uma (de todas?) relação familiar.
O uso consciente e preciso das cores (ou da falta delas), das formas e dos espaços faz mais que uma releitura da carta. A ilustração transmite numa só mirada o acerto de contas na família, os anos de silêncio ou gagueira e a aterradora figura paterna.
Ilustração de Amilcar de Castro que estampa a capa da edição nacional de Carta ao pai
Reconhecido pelo trabalho com chapas de ferro, Amilcar, explora, principalmente, dois princípios: a dobra e o deslocamento. O aço é trabalhado como papel e o objeto que surge desse movimento-origami é inscrito num espaço aberto dialogando e sendo interpelado por ele. Concebida tridimensionalmente, a obra exposta se fragmenta enquanto matéria que é e recebe passivamente a influência do clima, do solo, da natureza. Essa deterioração soa como aviso: estamos, esculturas e homens, igualmente submetidos à força do Tempo, um dos deuses mais lindos.
O artista-origamista interfere o mínimo possível na estrutura da peça de modo que é possível refazer sua unidade interna por meio do olhar, desdobrando e abrindo as pontas, descobrindo a chapa inteiriça. Nenhuma sobra.
As figuras feitas a partir do corte-dobra se, ao mesmo tempo, parecem um tanto racionalistas e econômicas, podem ser consideradas, também, figuras do campo da poesia. Tal como se o aço corten de Amilcar tivesse passado pela “faca só lâmina” de João Cabral de Melo Neto (que é, por sua vez, minimalista e perfeito em sua lira), restando da matéria apenas o suficiente.
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O espanto com a capa de Carta ao pai não vem tanto pelo talento notável do Amilcar-escultor, mas pela habilidade do Amilcar-ilustrador ao escrever, com pincel e nanquim, uma espécie de prefácio completo, complexo e econômico.
Amilcar ainda propõe a seguinte dinâmica: enquanto no trabalho com o aço, o ferro toma a leveza do papel; no trabalho com o papel, os objetos naturalmente leves garantem a densidade e robustez do aço.
Se não fui capaz de reconhecer de imediato que o labirinto, com seus caninos negros e ferozes, era de Amilcar de Castro, o que me ligou aos três sujeitos – Amilcar-escultor, Amilcar-pintor e ao próprio Kafka – foi a experiência da emoção estética. Aquele tal arrebatamento que vez ou outra na vida nos dá a graça.