Talvez a palavra útero incomode

Correspondência

20.08.12

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Oi, Fabrício,

Tudo bem por aí? Espero que sim. Adorei o teu e-mail, me fez lembrar de quando nos conhecemos. Faz quatro anos que você mandou o King Kong e cervejas lá pra casa da minha mãe, em Pelotas. Parece mais, não? Fiquei com saudade daqueles e-mails que a gente trocava quando eu estava na Holanda. É muito bom te ler, mas melhor ainda é estar aí contigo. Preciso tomar um daqueles cafés da manhã com huevos rancheros e litros de cafeína de novo. Temos muita coisa pra conversar. Quero conhecer o apartamento novo (você não existe, Fabrício Corsaletti. Achava que esse espaço Angélica Freitas era brincadeira tua… Será que mereço a homenagem? Tudo que faço é subtrair livros da tua biblioteca, afinal). Quero passear contigo e com a Mari na Liberdade. Vamos ver se em setembro a gente consegue se encontrar.

Estou em Quito, mas amanhã volto para Pelotas. Vim ler uns poemas aqui. Já tinha estado no Equador há dois anos, pero de paso, a caminho da Colômbia. Mas você sabe, não sou turista. As viagens acabam aparecendo, e o que eu faço é dizer sim a elas. Não sou do tipo que tem vontade de conhecer todos os pontos turísticos de um lugar. Gosto de caminhar por aí, pode ser em Porto Alegre, Paris, Potosí. Esses dias estava passeando pelo centro histórico de Quito e encontrei um café onde havia parado pra descansar na primeira vez que vim. Tive que entrar, claro. Sentei ali, tomei um café, fiquei olhando o movimento. Não li, não escrevi, nada demais aconteceu, só me deu uma pontinha de melancolia. Por ter pensado na vida? Pela passagem do tempo? Pela senhora que demorava em terminar sua refeição? Vai saber. Mas eu precisei entrar naquele café de novo, sabe, e se voltar a Quito certamente vou tomar outro americano lá. Depois continuei a caminhada sem destino e acabei encontrando um museu maravilhoso de arte pré-colombiana. “Casa del Alabado”, se chama, e coincidentemente a Bel Pedrosa me tinha recomendado esse mesmo museu umas semanas atrás. Havia umas coisas lindas lá, de mais de quatro mil anos antes de Cristo. Pequenas estátuas de homens, mulheres, de xamãs, utensílios com desenhos representando visões diferentes do cosmos. Eu pensei: e a gente marcando o tempo a partir do nascimento de Jesus. É tudo muito arbitrário neste mundo, meu Jah.

Conversei com algumas pessoas aqui e a opinião é que o Brasil dá as costas aos países da América do Sul. Sendo assim, pensei em perguntar o que lhes impedia de nos dar um belo chute no traseiro. Porque elas têm razão. Um pouco, pelo menos. Você conhece algum escritor ou escritora do Equador? Da Bolívia? Da Venezuela? Eu já li um poeta equatoriano porque o conheci num festival. Chama-se Roy Siguenza, e ele é muito bom. Mas, da América do Sul, brasileiro só lê os argentinos e os chilenos. Tô errada? Me diz. Brasileiro vai a Buenos Aires comer asado e tomar vinho e comprar roupa e passar frio e achar tudo muito europeu (antes de ser assaltado, claro). Adoro Buenos Aires, você sabe, todas aquelas livrarias e cafés, e tenho bons amigos lá. Mas acho que, no geral, brasileiro não gosta de país pobre, nem preto, nem indígena, então a Argentina ali do Rio da Prata, toda branquinha e ainda por cima barata, é irresistível. Mas eu posso estar errada.

Espero que você tenha conseguido resolver os contos. E me diz: quando você vai publicar o livro novo de poemas?

Ah, esta semana a Heloisa me mandou a capa do meu livro! Que emoção. Deve sair aí por outubro, acho. E o título ficou aquele mesmo: Um útero é do tamanho de um punho. Já me perguntaram se tem a ver com fisting (!). Não, não, pelo amor de Buda. É uma frase que li na internet há uns quatro anos, quando estava pesquisando textos sobre o corpo da mulher. Encontrei um que lá pelas tantas dizia: “um útero é do tamanho de um punho fechado”. Fiquei pensando que é desse tamanho mas cabe tanta coisa ali… Cabem faculdades de direito, de medicina, cabem igrejas inteiras… Acabei escrevendo um poema de cinco páginas. Que está no livro, claro. (“Eu durmo comigo” também está, não se preocupe). Acho que muitos dos meus amigos e amigas não gostaram do título. Talvez a palavra útero incomode. Mas tudo bem, porque incomodar é bom. Já reparou que os títulos dos livros de poesia são quase todos muito sérios e chatos? Menos “Esquimó”, claro. “Esquimó” é o melhor.

*

Fabrício, já estou viajando, no aeroporto de Lima agora, e brigando com a conexão da internet. Vou mandar este e-mail antes que caia de novo. Meu voo para Porto Alegre só sai à noite, então ficarei zanzando por aqui e comendo umas bananas fritas que trouxe do Equador, com toda a classe que me é peculiar.

Um beijo,

Angélica

PS: Que massa essa história do Dylan e do Timrod. É pra pôr fé na gatunagem ou não?

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