O que observamos quando observamos?

Cinema

26.02.14

A mostra Jean Rouch segue até 27/2 no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, e o DVD A pirâmide humana/Cocorico! Monsieur Poulet pode ser adquirido nos centros culturais ou na loja online.

(Originalmente publicado no programa do seminário e retrospectiva Jean Rouch, Instituto Moreira Salles, julho-agosto de 2009).

1. Durante muito tempo, a vertente dominante do documentário defendia a ideia de que, de um lado, havia a realidade, e do outro, o filme. A função do filme seria capturar a realidade que lhe é anterior.

2. Em 1896, Louis Lumière filmou um jogo de bocha num parque de Paris. Um dos personagens nota a presença da câmera e passa a comemorar, aos pulos, toda e qualquer jogada, por mais trivial que seja. O cinema tinha apenas um ano.

3. Os diretores do cinema americano de observação quiseram inventar um documentário capaz de representar um mundo sem consciência de estar sendo filmado. O inglês Richard Leacock foi um dos grandes pioneiros desse tipo de documentário, cujo filme inaugural é Primárias [Primary], de 1960.

4. Crônica de um verão [Chronique d’un été] também é de 1960. O filme é dirigido por Jean Rouch e Edgar Morin. Logo no início, ouve-se a voz em off de Rouch: “Esse filme não foi representado por atores, mas vivido pelos homens e mulheres que dedicaram momentos de suas vidas a uma experiência nova de cinema-verdade”. Os homens e mulheres de Crônica de um verão respondem a uma pergunta simples: “Você é feliz?”

5. Os personagens de Crônica de um verão agem pouco e falam muito. Em Primárias, é o contrário que se dá – o filme é conduzido pela ação. Palavra num caso; ato no outro. Morin, defensor do cinema do verbo, escreveu: “O ato, afinal, é a palavra; o ato se traduz por meio dos diálogos, das discussões, das conversas”.

6. As palavras de Rouch e Morin são provocadas. “Você é feliz?” Tudo acontece porque existe uma câmera pedindo aos personagens que se manifestem.

7. Rouch dizia que não filmava a realidade em si, mas aquela produzida pelo ato de filmar. O filme documenta uma realidade que não existe fora do filme, revelando assim uma nova verdade, uma verdade do cinema – Cinema-vérité. É o homem no parque de Lumière que passa a fazer teatro quando vê a câmera.

8. Trata-se da produção de realidades. O filme cria o que antes não existia. Nesse sentido, é o inverso do jornalismo. O que a câmera registra é um fato fílmico por excelência, parte factual, parte invenção.

9. “Quero revelar, sempre com ceticismo, a parte de ficção que existe em cada um de nós, e que para mim é a parte mais real de cada indivíduo”, diz Rouch. Existe um coeficiente de irrealidade em cada um de nós. Rouch se interessa por isso.

10. De nada adianta mentir para o psicanalista. Afinal, não se trata de uma mentira qualquer, mas de nossa mentira. A interpretação se dará do mesmo modo.

11. Eduardo Coutinho, sobre Santo forte. “O que vemos no filme não é um evento que estava lá, pronto para ser filmado. O filme é o evento, na medida em que o provocamos”.

12. O cinema norte-americano de observação é uma invenção de jornalistas. O cinema de intervenção de Jean Rouch é a invenção de um antropólogo. Isso diz muito.

13. O cinema de Leacock observa, o de Rouch provoca. O de Leacock torce para que alguma coisa aconteça, o de Rouch precipita os acontecimentos.

14. No filme que dirigi sobre a campanha presidencial de 2002, há uma longa sequência passada dentro de um avião. Nela, Lula esboça um panorama da esquerda mundial e se compara favoravelmente a Lech Walesa. Ele não olha para a câmera e parece não ter consciência dela. Mas tem. É um teatro de ótima qualidade. Talvez em nenhum outro trecho do filme Lula se exponha tanto.

15. Jean Rouch: “Não se trata de teatro ou verdade, mas de teatro e verdade”.

16. Numa surpreendente iluminação, Rouch se deu conta de que a única verdade ao alcance do documentário é a verdade da ficção. Assim que a câmera roda, homens e mulheres se transformam em personagens.

17. Teodorico, o imperador do sertão, de Eduardo Coutinho, é o mais fascinante filme rouchiano já produzido no Brasil.

18. François Truffaut, depois de assistir a Crônica de um verão: “As pessoas são capazes de pagar para assistir à mentira organizada, mas não à verdade confusa”. Era uma canelada no cinema-vérité e uma defesa do cinema de observação. Truffaut achou Crônica de um verão um filme invertebrado, o que de fato ele é.

19. No cinema americano de observação, existem momentos em que os personagens se esquecem da presença da câmera. Mais adiante, voltam a se lembrar dela. Portanto, há uma oscilação entre consciência e esquecimento, entre teatro e espontaneidade. A espontaneidade não é necessariamente superior ao teatro, nem vice-versa. No fim das contas, a prova dos nove é sempre o filme. Existem obras-primas no currículo do cinema de observação e no do cinema verdade. É o tanto que valem princípios teóricos.

20. No início da década de 1960, em Lyon, França, Edgar Morin e Richard Leacock assistiram pela primeira vez a, respectivamente, Primárias e Crônica de um verão. Um odiou o filme do outro. Para o francês, o cinema dos norte-americanos “desconfia das palavras, das opiniões, dos julgamentos […] como daquilo que vem contaminar um real que é preciso manter em sua pureza original”. Já Leacock “se insurgiu contra a escola francesa prisioneira do verbo, ignorando a espontaneidade do real, forçando as pessoas a representar diante da câmera”, no dizer de um crítico.  Sobre o cinema de Rouch-Morin, Leacock vituperou: “A câmera perturba as pessoas, já que a única coisa que está acontecendo com elas é o fato de estarem sendo filmadas. Elas só podem pensar nisso. Como podem se esquecer [da câmera, do filme]?”

21. Em 2004, Jean Rouch, parceiro de Morin, emprestou seu apartamento parisiense a um amigo. Aos 87 anos de idade, partiu para o Níger, onde morreu num acidente de automóvel. Em Paris, Richard Leacock recebeu a notícia na sala de seu amigo Rouch.

* João Moreira Salles é documentarista, diretor de Notícias de uma guerra particular, Santiago e outros filmes.

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