Fui convidado a dizer algumas palavras sobre o historiador inglês Eric Hobsbawm, que faleceu em Londres na madrugada de segunda-feira, dia 1º de outubro, aos 95 anos.
É uma tarefa um pouco emocionante, porque Eric era um grande amigo meu. Nós nos encontramos pela primeira vez em 1960, imediatamente depois de minha primeira visita ao Brasil. Foi uma amizade de 50 anos. Por muitos anos fomos colegas na Universidade de Londres e vizinhos residentes no bairro de Hampstead, em Londres. Estive em Londres na semana passada, em parte para visitar Eric. Sua esposa Marlene me disse que eu fui o último amigo a falar com ele, apenas 24 horas antes do seu falecimento.
Eric Hobsbawm nasceu em Alexandria, no Egito, em 1917. Os pais eram judeus de classe média, o pai inglês, filho de um imigrante polonês, a mãe austríaca. Ambos morreram quando Eric era adolescente. Ele cresceu em Viena, em Berlim (onde, com 14 anos de idade, entrou no Partido Comunista) e, finalmente, em Londres. A memória dos anos 1930-1933 em Berlim exerceu uma grande influência na sua vida. Ele se formou no King’s College, na Universidade de Cambridge, no final dos anos 30. Esta experiência foi também fundamental na sua vida. Ele sempre foi um homem de Cambridge – por muitos anos um Fellow e mais tarde Honorary Fellow de King’s. Mas, depois da Segunda Guerra Mundial, ele se tornou professor de História no Birkbeck College, na Universidade de Londres, e ficou ali até a sua aposentadoria.
Hobsbawm foi um historiador de tradição marxista europeia. Fez parte do Grupo de Historiadores do Partido Comunista da Grã-Bretanha do pós-guerra, que incluía, por exemplo, Christopher Hill e E.P Thompson. Eles fundaram o jornal Past and Present e reformaram o estudo da história social na Grã-Bretanha – e no mundo.
As contribuições mais importantes de Hobsbawm como historiador são, a meu ver, as seguintes: primeiro, os livros Primitive rebels (1959) e Bandidos (1969), sobre protesto rural e revolta popular no Sul da Europa, especialmente na Itália, e na América Latina no século XIX; segundo, Labouring men (1964) e outros estudos sobre a classe operária inglesa, e especialmente o impacto da Revolução Industrial no standard of living dos trabalhadores; terceiro, Industry and empire (1968), a história econômica da Grã-Bretanha de 1750 até os meados do século XX, para alguns o seu melhor livro; quarto, o livro muito influente, co-organizado com Terence Ranger, A invenção das tradições (1983), sobre o uso impróprio da história na formação da ideologia nacionalista; finalmente, e sobretudo, a sua história do “longo século XIX” (1789-1914) em três volumes: A era das revoluções 1789-1848 (1962), A era do capital 1848-1975 (1975) e A era dos impérios 1875-1914 (1987), mais sua historia do “curto século XX” (1914-1989) Era dos extremos 1914-1989 (1994). Esta tetralogia representa a melhor introdução à história do mundo moderno em inglês, sempre em catálogo, e traduzida em mais de 40 línguas. Estes livros demonstram a extensão e a profundidade do seu conhecimento dos séculos XIX e XX, a sua cobertura geográfica, o domínio de várias línguas, os seus poderes sem comparação de organização e síntese e de combinar a análise de estruturas econômicas e sociais com a influência da cultura e o papel dos indivíduos e, não menos importante, a qualidade da escrita.
Mas uma sombra? Até o fim da Guerra Fria, diferentemente da maioria dos seus colegas, Hobsbawm jamais rompeu com o Partido Comunista – não em 1956, nem em 1968 – apenas deixou de contribuir como membro afiliado imediatamente antes do colapso do partido em 1991. Ele justificou a sua posição em termos de lealdade à sua juventude antifascista e lealdade aos seus companheiros na longa luta contra o fascismo. Na realidade, ele sempre esteve um pouco afastado, relativamente independente do CPGB, mais perto do Partido Trabalhista inglês. E os traços da ideologia marxista-leninista na sua obra são poucos. Todavia, os seus inimigos na direita, e alguns amigos liberais e sociais democratas, ficaram decepcionados pela sua falha – na sua história do século XX, Era dos extremos, em várias entrevistas no rádio e na televisão, e na sua autobiografia Tempos interessantes (2002), publicada quando ele tinha 85 anos – em reconhecer e em denunciar os crimes cometidos, os milhões de vidas perdidas, em nome de um futuro socialista ou comunista, na União Soviética de Stalin e na China de Mao. Ele mesmo sempre foi muito generoso com seus críticos mais ferozes, por exemplo, no seu tributo a Tony Judt após o falecimento trágico dele no ano passado.
Hobsbawm foi muito interessado no Brasil: no povo brasileiro e na história brasileira (Lampião foi incluído no seu estudo sobre os chamados social bandits); na música brasileira (ele era um conhecido historiador e crítico de jazz, no início sob o pseudônimo Francis Newton, autor de um livro deslumbrante, História social do jazz, e ele uma vez me falou que, na sua opinião, os dois gênios da música popular no século XX eram Duke Ellington e Tom Jobim); e na política brasileira. Em The forward march of Labour halted? (1981), uma coletânea dos artigos da revista Marxism Today, organizado por Martin Jacques, ele tinha sustentado que o movimento trabalhista europeu já não era capaz de ter o papel transformador conforme o marxismo. Suas ideias políticas muito influenciaram o eurocomunismo, especialmente na Itália, e na Inglaterra o Partido Trabalhista, o New Labour de Tony Blair (que ele veio a desgostar). No Brasil, entretanto, o Partido dos Trabalhadores formado em 1980, o único partido da esquerda socialista-democrática baseada no movimento trabalhista (e com um operário como o seu líder) a emergir no mundo no período após a Segunda Guerra Mundial, tinha, a seu ver, a possibilidade de chegar ao poder e transformar a sociedade. Por isso, ele ficou muito entusiasmado pela vitória do PT na eleição presidencial de 2002 e tornou-se um grande admirador e amigo de Luiz Inácio Lula da Silva. Finalmente, e não sem importância para Eric, ele vendeu mais livros no Brasil do que em nenhum outro país fora do Reino Unido. “I’m big in Brazil”, ele disse. Eu me lembro de que na primeira Flip, em Paraty, em 2003, quando ele e eu dividimos o palco, Eric foi recebido como um popstar.
Nos últimos tempos, a reputação, nacional e internacional, de Hobsbawm cresceu – como historiador e como intelectual público, pensador político, homem de esquerda, socialista radical quando o socialismo estava perdendo terreno em todo o mundo. O seu último livro Como mudar o mundo, ensaios sobre a história do marxismo, alguns velhos, alguns novos, foi publicado em 2011, quando já tinha 94 anos. Um livro de ensaios sobre a cultura e a sociedade no século XX foi completado meses antes do seu falecimento, para publicação em 2013.
Fisicamente debilitado nos anos recentes, ele ficou lúcido, engajado, intelectualmente interessado em tudo até o final. Nos nossos últimos encontros, sempre com o bom malt whisky, eu fiquei surpreso que ele queria discutir, por exemplo, o cantor de rap brasileiro Criolo, sobre quem eu confessei nunca ter ouvido, e as origens ideológicas da Revolução de 1952 na Bolívia! No sábado passado, horas antes do seu falecimento, nós conversamos sobre Lula e o mensalão, Chávez e as eleições na Venezuela e a diferença entre história mundial e história global.
Eric Hobsbawm era um homem extraordinário, um amigo leal, um brilhante intelectual e, sobretudo, um grande historiador dos séculos XIX e XX, talvez o historiador mais importante – certamente o mais lido – da segunda metade do século XX e das primeiras décadas do século XXI.
* Leslie Bethell é Professor Emérito de História da América Latina na Universidade de Londres, Fellow Emérito do StAntony’s College e ex-diretor do Centro de Estudos Brasileiros na Universidade de Oxford, e sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras.