Richard Serra e a brutalidade do progresso

Artes

27.11.13
7 plates, 6 angles (Cristiano Mascaro)

7 plates, 6 angles (Cristiano Mascaro)

A nova exposição de Richard Serra é uma oportunidade para uma experiência-síntese de seu percurso como escultor. As obras, instaladas em duas das galerias de Larry Gagosian no Chelsea, são variações nítidas de realizações anteriores, que enfrentam abertamente o desafio de impactar um público já familiarizado tanto com a escala de grandes acontecimentos quanto com a monumentalidade das conquistas específicas deste seu herói de 74 anos.

Mais do que grandes surpresas, o que impressiona é a linearidade do avanço do artista na capacidade de gerar complexos desdobramentos para uma obra tão única e tão coerente. Fatores que pautam cada vez menos a produção contemporânea, sobretudo entre seus pares mais jovens, acostumados a uma maior fragmentação de temas e meios.

Intervals (Gustavo Prado)

Intervals (Gustavo Prado)

 

Elevations repetitions (Gustavo Prado)

Elevations repetitions (Gustavo Prado)

Por maior ou menor que seja o interesse pela obra, é inevitável a admiração gerada por um de seus aspectos mais raros: tamanha entrega à busca por compreender um conjunto delimitado de problemas cuja natureza é fundamentalmente formal.  Ela se manifesta na determinação em observar os resultados obtidos por variações impostas por algo tão preciso quanto a mudança no uso de chapas de seis polegadas para chapas de nove polegadas de espessura. Ou pelos impactos provocados por mudanças no tratamento da superfície do aço. Ambas variações que transformam a experiência do espectador e que podem ser claramente observadas se comparamos a obra Intervals, desta exposição, com Elevations repetitions, exibida em 2006 na mesma galeria.

Inside out (Gustavo Prado)

Inside out (Gustavo Prado)

 

Torqued ellipses

Torqued ellipses

Na galeria da rua 21, a obra Inside out, por sua vez, estende as investigações das Torqued ellipses, de 1996 – até hoje exibidas em Dia Beacon, a apenas alguns quilômetros ao norte de Manhattan. Constituída por imensas chapas de aço à prova d’água, com quatro metros de altura e cinco centímetros de espessura, cada chapa ou pedaço, mesmo capaz de se sustentar sem o apoio da seguinte, é posta lado a lado, formando – se vistas de cima –  duas faixas, ou fitas, com oito pedaços cada uma. Band (fita, faixa, tira, banda) foi o termo usado pelo artista no título de uma obra semelhante de 2006. Essas duas faixas viram em diferentes direções num movimento ao mesmo tempo paralelo e espelhado, criando corredores e salas curvas cuja forma geral é impossível de intuir quando percorremos a obra, seja de dentro ou de fora.

Inside out

O conjunto chega a vinte e quatro metros de comprimento por doze de largura, e atinge quatro metros de altura. Foi construído na cidade de Sigen, na siderúrgica alemã – EEW Pickhan. Mas se essas informações fossem suficientes para descrever a forma com que nessa obra, e em tantas outras, o artista é capaz de transformar a experiência que se tem do espaço, ou as implicações conceituais de tamanha operação, estaríamos no campo da engenharia e não no da arte.

De outro lado, o conhecimento adquirido por uma indústria símbolo da maior economia do planeta, origem de suas pontes e arranha-céus, é central para a constituição de um percurso escultórico que já tem mais de quarenta anos e que – provavelmente – começou quando, aos quatro anos, o artista assistiu com o pai ao lançamento ao mar de um imenso navio, num dos maiores estaleiros de São Francisco, sua cidade natal.

Essa imagem é bastante reveladora, um assombro com a imediata perda de peso de um volume colossal,  como o de um navio, aponta para a futura necessidade de investigar aspectos fundamentais da fisicalidade das coisas. Mas há uma outro aspecto dessa narrativa pessoal, que é a descrição da sedução pelo que a indústria e o poderio econômico podem realizar e, em certa medida, uma sedução com o poder. Talvez seja possível estabelecer a partir dessa história formadora e nuclear, e destas duas dimensões nela presentes, uma analogia com a ambivalência contida pela experiência das obras dessa exposição, criada pela convergência de dois fatores.

O primeiro fator se dá pela criação de um lugar de conhecimento próprio, com espaços que não são nem naturais nem, tampouco, arquiteturas, como um território delimitado para testar nossa apreensão do mundo; no qual a diferença entre côncavo e convexo é examinada, ou a possibilidade de transcender a memória de um material como o aço – ao se testar sua elasticidade. Um fator integralmente relacionado à uma experiência abstrata das obras, ou mesmo a uma contemplação dos procedimentos sobre ela aplicados na sua construção.

O segundo fator, no entanto, é mais frágil, banal e mundano, e ressoa na superfície maciça das obras, como um som que vem da sua origem, do pátio da siderúrgica onde nasceu, do interior dos cargueiros que as transportaram, um resquício da contaminação de outras formas que, mesmo ao seu lado, arranhando sua pele, mereceram outros destinos. Uma memória que vem do contexto do seu uso como commodity, a constatação da sua verdadeira natureza, indissociável da pujança da indústria e do poderio financeiro que permitem desprender tamanha materialidade e energia em algo que não possui qualquer função. É como o velho dito popular : ?diga-me com quem tu andas que te direi quem és.” É impossível obter dessas obras uma experiência desassociada de sua inserção nos fluxos de mercadoria internacionais, e seu caráter espetacular também segue as expectativas e as demandas desse contexto.

7 plates, 6 angles (Gustavo Prado)

7 plates, 6 angles (Gustavo Prado)

Em nenhum outro momento da exposição a convergência entre esses dois fatores é tão nítida e poderosa quanto na obra 7 plates, 6 angles, constituída por sete chapas de cerca de dois metros e meio de altura, doze metros de comprimento e 20 centímetros de espessura. Ocupando uma área total de vinte e um metros de comprimento por treze metros e meio de largura. Estas chapas estão colocadas em ângulos impossíveis de precisar de dentro delas, mas claramente intercalados entre mais abertos e mais fechados, que podem ser acessados por ambos os lados, já que as chapas estão soltas em relação às paredes da galeria.

Logo na entrada, o primeiro impacto se dá pela cor, o calor e a beleza da aspereza das paredes laranjas, de seu ocre ora mais claro, ora mais escuro, cuja luminosidade enternece e atrai, que nos cânions ondulosos e pendulares de Inside out é substituída por um cinza chumbo, gélido, liso e sombrio. Mesmo a luz natural que parecia descer generosamente dos recortes angulosos das claraboias da galeria na rua 21 agora parece fria, de uma incandescência mórbida. A sensação aterradora é a de chegada em uma espécie de Purgatório, um estágio intermediário e vazio que não é de dor nem de alegria. Como se no ventre de uma máquina, de dentro dos planos imensos, observando a violência que rasgou os limites de cada chapa, assustados com a força de maçaricos titânicos que as partiram, esperamos o momento em que esses planos voltarão a se mexer. E a máquina voltará a ser ligada. Os arranhões nas paredes nos dizem que eles já colidiram, e que a qualquer momento isso poderá voltar a acontecer.

7 plates, 6 angles (Gustavo Prado)

7 plates, 6 angles (Gustavo Prado)

Mesmo com a precisa da união entre as chapas, uma réstia de luz sobra dentre as quinas criadas nas suas dobras, e essa luz, na fresta, nos atrai a aproximarmo-nos cada vez mais. O corpo agora já toca as paredes geladas e duras, tão duras e indiferentes quanto uma morte prematura. E podemos ouvir o medo dizendo: melhor ficar assim, mais perto da dobra, quando a máquina for religada o susto será menor, e a passagem mais imediata. Mas o medo é insuportável, o corpo não ouve mais o que o cérebro aprendeu a reconhecer como o universo do deleite seguro da obra de arte, ele não quer mais esperar pela volta das contrações e somos expulsos para fora da obra.

 North, East, South, West

North, East, South, West

 

Beam drop

Beam drop

O que sentimos dentro dessa obra é algo único, mesmo se comparado à insinuação do risco em obras como North, East, South, West, de Michael Heizer, dentro das quais se pode despencar dolorosamente, mas que nos convidam a nos aproximar e experimentar a vertigem; ou diante da escultura Beam drop, de Chris Burden,  que retém a memória da violência de sua execução, de vigas de aço despencadas do céu numa piscina de concreto. Nenhuma delas se aproxima da sensação visceral e do medo, causadas por essa obra. Há nela uma nova forma de violência,  presente na desmesura do gesto, na imposição de uma manipulação sobre o corpo e o sensório adquirida a partir de um virtuosismo incontestável, mas que avança incólume sobre o público, o outro.

Há na operação de Serra uma espécie de transe faustiano, há no seu progresso uma indiferença tamanha ao que é meramente humano, como a escala do corpo, e um apoio tão desmedido ao poderio financeiro, militar e político da sociedade e da cultura que essa materialidade representa e elogia, que ao final nos resta apenas esse impulso por matar o pai, um certo ressentimento com o alcance do seu domínio, tão imenso e completo.

Ao deixarmos a galeria nos damos conta, um tanto arrependidos, mesmo cheios de amor e gratidão pelo tanto que ele já nos deu, que torcemos secretamente pelo fim do seu reinado. Há de haver novos espaços a ocupar.

* Gustavo Prado é artista plástico e tem seu estúdio no Brooklyn, em Nova York.

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