Os manuscritos de Clarice Lispector: alquimia da escrita

Literatura

24.08.11

 
Minha anarquia obedece subterraneamente a uma lei
onde lido oculta com astronomia, matemática e mecânica.
(Clarice Lispector, Água viva)

 

A relação entre Clarice Lispector e os livros iniciou-se envolta na fantasia característica da infância. A Clarice-menina-leitora imaginava que livros nascessem já prontos, como seres: “Eu pensava, olha que coisa! Eu pensava que livro é como árvore, é como bicho: coisa que nasce! Não descobria que era um autor! Lá pelas tantas, eu descobri que era um autor. Aí eu disse: ?Eu também quero.'”[1] O percurso literário de Clarice inaugurou-se, pois, com o desvendamento da magia do livro e com o desejo de tê-la para si, de manipulá-la – arrebatamento de aprendiz de feiticeiro, como diria Mario Quintana.

Sendo assim, a biblioteca pessoal e a ficção de Clarice convergem simbolicamente num ponto muito peculiar da história afetiva da escritora – o encantamento pelo livro. Repositório da escrita, o livro fascinou a Clarice-menina-leitora, fascínio esse que a Clarice-adulta-escritora, ao longo de sua produção ficcional, gradativamente desconstruiu, como criança curiosa que desmonta o brinquedo na ânsia pela origem da luz e da música.

Mais do que uma coleção de livros e papéis, o acervo Clarice Lispector carrega marcas da escritora e assinala leituras, gostos literários, influências e momentos de sua história. O acervo começou a ser depositado no Instituto Moreira Salles (IMS) em 2004 por Paulo Gurgel Valente, filho mais novo de Clarice. Nesse ano, o IMS recebeu um primeiro lote de itens arquivísticos: originais manuscritos dos romances A hora da estrela (1977) e Um sopro de vida (1978); original datiloscrito encadernado, com anotações e emendas autógrafas, dos contos de “A bela e a fera” (1979); correspondência ativa e passiva; e 896 livros de assuntos variados, desde truques de mágica, astronomia e matemática a filosofia, psicologia e, naturalmente, literatura.

 

 

Os originais de A hora da estrela e Um sopro de vida depositados no IMS são os únicos manuscritos claricianos de que se tem notícia até o momento. Em termos de texto ficcional, a Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), que em 1977 recebeu o arquivo da escritora, possui apenas datiloscritos: Água viva (1973), com emendas autógrafas, “À procura de uma dignidade”, “A bela e a fera”, “Desespero e desenlace às três da tarde”, “Mendigo” e “Tentação”.

Além da raridade, os dois conjuntos de originais manuscritos guardados no IMS destacam-se por documentar o método de escrita de Clarice. Desde os primeiros trabalhos, a escritora adotara a anotação imediata, pois se esquecia facilmente das ideias que lhe ocorriam ao longo do dia. Assim, “passa a carregar um caderninho, onde vai fazendo as suas anotações. São as notas, soltas, que, em grande quantidade, e referentes ao mesmo assunto, constituirão já o seu romance (?).”[2]

Com o tempo, as anotações seriam feitas em qualquer tipo de papel, que estivesse facilmente à mão, e até por outra pessoa, a quem Clarice solicitava ajuda, quando impossibilitada de escrever. Olga Borelli, amiga da escritora, conta que, às vezes, durante uma sessão de cinema, anotava para Clarice uma ideia ou frase. Olga diz ainda que a escritora, em meio a afazeres domésticos, subitamente pedia à empregada que lhe fizesse anotações. Por isso, vemos, entre os originais de A hora da estrela e de Um sopro de vida, anotações em pedaços de papel, folhas de cheque e envelopes. Curiosamente, há um envelope com dois pares de marcas de batom. Tentativa de registro do instante-já ou pura vaidade clariciana?

Outra questão em torno desses manuscritos é que contradizem, pelo menos à primeira vista, certa tendência que Clarice tinha para se desfazer de originais. A própria escritora, na famosa entrevista concedida a Júlio Lerner em 1o de fevereiro de 1977, para o programa Panorama Especial da TV Cultura, afirmou destruir seus papéis:

 

[Clarice] (?) Aí comecei a escrever um conto que não acabava mais. Terminei rasgando e jogando fora.
[Júlio Lerner] – Isso acontece ainda agora de você produzir alguma coisa e rasgar?
[Clarice] Eu deixo de lado? Não, eu rasgo sim.[3]

 

Nas biografias de Clarice, narra-se que a escritora desde muito cedo destruía seus manuscritos. Além de outros casos, como o do conto interminável mencionado na entrevista acima, há o episódio em que, aos 9 anos, Clarice se empolgou com um espetáculo no teatro Santa Isabel, no Recife (PE), e escreveu Pobre menina rica, peça em três atos em duas folhas de caderno escolar. Logo após, rasgou tudo, porque temia que descobrissem o texto. Os originais de A hora da estrela e de Um sopro de vida, mais do que raros, impõem-se como legítimos sobreviventes ao ímpeto “charticida” de Clarice. Mas o que lhes garantiu sobrevida frente aos demais, que foram eliminados?

 

Original manuscrito de A hora da estrela (1977). Acervo Clarice Lispector/IMS

Original manuscrito de Um sopro de vida (1978). Acervo Clarice Lispector/IMS

 

Uma segunda pergunta que esses manuscritos suscitam tem a ver diretamente com o método de escrita de Clarice. Seu processo de trabalho dividia-se basicamente em duas etapas – inspiração e concatenação:

 

Quando eu estou escrevendo alguma coisa, eu anoto a qualquer hora do dia ou da noite, coisas que me vêm. O que se chama inspiração, né? Agora, quando eu estou no ato de concatenar as inspirações, aí eu sou obrigada a trabalhar diariamente. [4]

 

Na fase inicial de elaboração do texto, Clarice anotava inspirações, isto é, ideias e frases que lhe vinham prontas. Quando chegava a um volume de material satisfatório, partia para a segunda etapa de criação – concatenava as inspirações. Se a primeira fase poderia demorar meses ou anos, pois dependia de livre inspiração, o momento seguinte era de trabalho ininterrupto, não obstante interferências, como as dos filhos Pedro e Paulo Gurgel Valente, que brincavam por perto. Nessa etapa de atividade disciplinada e constante, a escritora abandonava lápis ou caneta e optava pela máquina datilográfica, que passou a usar no colo desde os tempos de Washington, na década de 1950. Com esse novo hábito, adquiriu mobilidade e deixou de se isolar em um cômodo da casa. Assim, escrevia sentada no sofá da sala, próxima dos filhos, de modo a eles não sofrerem a ausência da mãe escritora.

Clarice deveria destruir as inspirações à medida que as absorvia em textos mais maduros e desenvolvidos, deixando a primeira fase e passando à segunda. No entanto, com relação a A hora da estrela e Um sopro de vida, vemos que a escritora, mesmo em etapa avançada de criação, utilizou-se do manuscrito. Por quê?

A resposta para nossas duas perguntas talvez esteja no depoimento de Olga Borelli, gravado em 1979 e exibido pela TV Cultura em 2006, no programa 30 Anos Incríveis da TV Cultura, com apresentação de Gastão Moreira:

 

(?) Clarice, depois de um certo tempo, ela dizia que sentia muita preguiça de datilografar, que não era hábito dela, porque ela nunca escreveu, nunca fez manuscritos, ela sempre datilografava seus trabalhos e ultimamente então, como eu ia dizendo, ela passou a não sentir vontade, ela dizia que estava com preguiça, mas nós sabíamos, depois ficamos sabendo que era motivada pela doença, que ela desconhecia que ela tinha, mas que já estava minando todo o seu organismo.[5]

 

NOTAS

[1] GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 4. ed. São Paulo: Editora Ática, 1995. pp. 86-87.
[2] GOTLIB, Nádia Battella. Op. cit., p. 172.
[3] A última entrevista de Clarice Lispector. In: Shalom. São Paulo, ano 27, 1992.
[4] A última entrevista de Clarice Lispector. Op. cit.
[5] Depoimento de Olga Borelli. São Paulo: TV Cultura, 1979.

 

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