Este é, para todos os efeitos, o ano de Eduardo Coutinho. Aos 80 anos, o cineasta vive seu apogeu de produtividade e prestígio. Enquanto prepara um novo documentário, foi uma das estrelas maiores da recente Festa Literária de Paraty (Flip) e será homenageado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro, quando virá à luz um grande livro coletivo a seu respeito.
Sua entrevista na Flip, conduzida pelo diretor e montador Eduardo Escorel, seu velho amigo e parceiro, está inteira no YouTube. Aqui, a primeira das cinco partes:
http://www.youtube.com/watch?v=NobGhzE9liE
Uma espécie de versão compacta do futuro livro acaba de ser publicada pela editora Cosac Naify, com organização de Milton Ohata. No pequeno e precioso volume, intitulado O olhar no documentário, há textos do próprio Coutinho, essenciais para quem quer conhecer sua visão do cinema e da vida.
Contra as ideias gerais
Um deles, o artigo que dá nome ao livro, foi escrito pelo cineasta em 1992, a pedido do Festival Cinéma du Réel, de Paris, e resume sua descoberta tardia de um caminho pessoal no território do documentário: “Adotando a forma de um ?cinema de conversação’, escolhi ser alimentado pela fala-olhar de acontecimentos e pessoas singulares, mergulhadas na contingência da vida. Eliminei, com isso, até onde fosse possível, o universo das ideias gerais, com as quais dificilmente se faz bom cinema, documentário ou não, e dos ?tipos’ imediata e coerentemente simbólicos de uma classe social, de um grupo, de uma nação, de uma cultura”.
Impossível não notar – e não louvar – a rigorosa coerência entre as palavras do autor e a filmografia esplendorosa que ele produziria a seguir, na segunda de suas grandes “ressurreições” ou “reinvenções”. A primeira se deu quando ele retomou no início dos anos 1980, sob a forma de documentário de busca, o filme de ficção Cabra marcado para morrer, cujas filmagens tinham sido interrompidas brutalmente pelo golpe militar de 1964. Concluído em 1984, o filme se tornaria uma marco incontornável do documentário brasileiro e mundial.
O caráter central e emblemático do Cabra na trajetória do cineasta é iluminado no volume por três outros criadores que têm uma íntima proximidade com sua obra. Num texto breve, o poeta Ferreira Gullar fala do cordel que escreveu no início dos anos 1960 e que deu o título e o mote para o que deveria ser o primeiro longa de Coutinho, e contextualiza a gênese do filme. Eduardo Escorel, que editou o documentário final, detalha a saga das filmagens e da organização do material, numa verdadeira aula sobre montagem. E o documentarista João Moreira Salles, principal interlocutor criativo de Coutinho na última década, traça um comovente resumo do itinerário pessoal e artístico do diretor.
Absurdamente, Cabra marcado para morrer não está ainda disponível em DVD. Mas é possível vê-lo na íntegra no YouTube:
http://www.youtube.com/watch?v=VJ0rKjLlR0c
Dentro desse conjunto, podem parecer à primeira vista deslocados os sete textos de crítica escritos por Coutinho para o Jornal do Brasil em 1973 e 1974 e inseridos no coração do livrinho. Mas o desencaixe é só aparente. Com uma verve saborosa, que consegue ser ao mesmo tempo incisiva e elegante, o cinesta-crítico expõe sua visão pessoal do cinema, isenta de qualquer ranço intelectualista, programático ou doutrinário, ao analisar produções distantes de seu próprio universo. Fala de musicais, filmes de aventura, melodramas hollywoodianos, documentários “mundo cão”, surrealismo etc.
Cinema impuro
Ao exaltar o caráter circense de O pirata sangrento, estrelado por Burt Lancaster e dirigido por Robert Siodmak, afirma: “Sucedem-se as quedas e mortes, mas tudo no espírito do desenho animado. Não se vê uma gota de sangue e a violência é escamoteada – na verdade, os mortos poderiam se levantar, sem surpresa, como bons figurantes e stunt-men a serviço do show. Nesse sentido, o público sente logo que o filme não é contemporâneo: falta-lhe o cinismo complacente, a exploração sistemática da violência sádica”. O texto é de 1974, mas teria ainda mais sentido hoje.
Falando de surrealismo no cinema, Coutinho execra os “delírios formalistas” da vanguarda francesa dos anos 1920 e 1930, salvando apenas a concretude da linguagem de Buñuel, na qual “tudo pode ser interpretado indiferentemente como real ou como sonho e merece da câmera um tratamento igual – seco, preciso como o olhar de um entomologista”.
Ainda mais significativa é a coragem com que, num artigo sobre uma grande retrospectiva do cinema brasileiro promovida pela Cinemateca do MAM, o diretor defende a inventividade torta, “subdesenvolvida”, de filmes obscuros como Aves sem ninho (1939), de Raoul Roulien, com seu “estilo narrativo frequentemente confuso ou primário mas de vigorosa procura expressiva”.
Na leitura desses textos tão breves quanto luminosos, configura-se uma visão do cinema como arte impura, em que a expressão da vida trava uma luta incessante com as convenções industriais, culturais ou políticas para explodir na tela. Nos momentos em que isso ocorre, como nos filmes de Coutinho, é uma coisa linda de se ver.