Pena vai ter quem ficar

Miscelânea

29.04.13


Paulo Roberto Pires e Paulo Vanzolini, no Bar do Alemão. Foto de Ana Lima Cecílio

“Agora eu quero ver você me levar a um samba.” Era sábado, era São Paulo e chovia. Bebíamos, eu e ela, desde a hora do almoço. A pergunta, lá pelas nove da noite, era uma doce provocação carioca, uma das muitas nessa nossa vida em comum de ponte aérea. Um telefonema depois, vem a decisão: “bar do Gudin”.

Quando chegamos, tive certeza da noite perdida. O Bar do Alemão, que é um dos pontos certos das rodas de samba e choro desde que foi comprado pelo compositor Eduardo Gudin, estava deserto. Sentamos perto da porta para assistir de camarote ao dilúvio. Compulsivo instagrâmico, ensaio fotografar um quadro na parede quando sou interrompido pelo garçom: “Essa o senhor tira pessoalmente”, diz. E, diante de nosso pasmo, garante: “O seu Paulo vem hoje”.

O “seu Paulo” era o Vanzolini e, mesmo sendo remota a possibilidade de sua chegada ali, tremi de verdade: “Se ele chegar, eu morro”, disse a ela. Menos de meia hora depois, ela me diz, meio nervosa: “Então você vai morrer”. De capa de chuva e chapéu, Paulo Vanzolini chega ao bar com a mulher, Ana Bernardo, que cantaria naquela noite. O casal nos cumprimenta e, para mim, aquele protocolar “boa noite” bastava: eu poderia ficar olhando de perto um gigante, quem sabe ele cantaria alguma coisa, ele que era para mim um fascínio relativamente recente, um mundo que descobri com o lançamento, há dez anos, da caixa de CDs “Acerto de contas”.

Ela e eu tínhamos algumas referências em comum com ele, poderíamos até puxar assunto – eu fora professor de uma de suas netas, ela tinha um grande amigo em comum, já morto. Nessas situações não costumo titubear: fico quieto, na minha. Sempre. Mas eis que ela, a melhor e mais generosa das anfitriãs que uma cidade pode ter, sempre querendo que São Paulo seja mais e mais fundamental, puxou a tal da conversa. Ana Bernardo veio falar e nos levou para a mesa. E ali ficamos, com ele, até alta madrugada.

Perguntei muito. E ouvi muito, ainda que tudo muito confuso na balbúrdia da noite. Sobre Adoniran e Antonio Candido, Silvio Caldas e João Macacão, Harvard e Demônios da Garoa, um samba no Cambuci, Paulinho da Viola e a comovente adoração por Chico Buarque – “Ouve, isso é que é um samba”, disse, enquanto um músico cantava “Quem te viu, quem te vê” a seu pedido.

Ele nos mostrou sua carteira da Ordem dos Músicos, falamos muita bobagem, como todo mundo fala na madrugada do bar, e, já sem nenhuma vergonha, pedi que ele cantasse, ali na mesa, uma das músicas de que mais gosto. Ele não se fez de rogado: “Quando eu for eu vou sem pena/Pena vai ter quem ficar”.

Avesso a elogios, ele riu muito – e, modestamente, me deu os devidos parabéns – quando eu disse que naquela mesa estavam as duas melhores coisas de São Paulo: ela e Paulo Vanzolini. E ganhamos de presente de Ana Bernardo, soberba cantora, uma interpretação de “Bandeira de Guerra”: “Da Ana e do Paulo para a Ana e o Paulo”.

No dia seguinte, valia o clichê: parecia que nada daquilo tinha acontecido. Bebida demais, talvez.

Fui checar o celular e, sim, ali estavam as muitas fotos dessa conversa, imagens da noite de 9 de março de 2013 que estão doendo muito agora, nessa amena madrugada de Nova York, onde também vale o clichê da solidão e da distância, quando esbarro na internet com a notícia desconcertante, embora não de todo inesperada, da morte de Paulo Vanzolini, poucos dias depois de fazer 89 anos.

Ele, um homem de moral, tinha mesmo razão: pena vai ter quem ficar. E quanta pena. Quanta.

* Paulo Roberto Pires é editor da serrote.

Mais

Seleções: Paulo Vanzolini – a Rádio Batuta apresenta um passeio pelas grandes canções de Paulo Vanzolini, nas vozes de Chico Buarque, Paulinho da Viola e outros admiradores do compositor, especialmente selecionadas por Luiz Fernando Vianna e Carla Paes Leme.


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