No dia 19 de março de 2013 tivemos o privilégio de ouvir o pianista André Mehmari em um repertório praticamente inédito em sua carreira até então: um show exclusivamente dedicado a Ernesto Nazareth. Podemos dizer que o ineditismo é de mão dupla, pois provavelmente a obra de Nazareth nunca foi trabalhada da maneira como a ouvimos nessa noite.
A primeira coisa que fica clara quando ouvimos o estilo pessoal de André, antes mesmo de seu virtuosismo brilhante, é a segurança que tem sobre cada peça e sobre cada releitura. A peça nunca o “pega”. Mesmo com apenas um mês para se preparar, é ele quem está sempre no comando, tocando com a visão de um compositor.
Além disso, é um mestre dos contrastes. Vai do plácido nos agudos ao malandro nos graves em uma fração de segundo. Também ouvimos desde sons minimalistas “crocantes” sem pedal, até um pianismo mais exuberante, com pedal bem dosado.
Suas influências são múltiplas, indo do jazz ao clássico. Pianisticamente, lembra o estilo virtuosístico de Leandro Braga, Keith Jarret e Egberto Gismonti, que também trabalham com ritmos quebrados em 7/8, e deslocam o tempo forte do acompanhamento, criando uma enorme diversidade de ritmos improvisada no momento.
Com sua vasta cultura musical, ouvimos Nazareth em combinações raras: a Sagração da Primavera de Stravinsky se mescla com Reboliço, ambas compostas em 1913, fazendo um paralelo inédito entre dois mundos e continentes aparentemente tão distantes. Depois ouvimos o tema de Tristão e Isolda, de Wagner, se transfigurando no tango Furinga, tendo como denominador comum um intervalo de sexta que os une. Também ouvimos citações de Beethoven, Chopin, Ravel, Gismonti, Luiz Gonzaga e Guinga. Todos esses intercruzamentos acabam por evidenciar novos ângulos da obra de Nazareth, até então ocultos. Depois, fazendo o caminho inverso, nazaretheia uma ária de As Bodas de Fígaro, de Mozart.
Mehmari possui um método engenhoso de desconstruir a peça até seus motivos mais celulares (como vemos no Famoso) e depois a reconstrói a partir de seus contratempos e dissonâncias (como o fez em Fon-Fon). Também brinca com as tonalidades sem precisar “pedir licença” para modular, fazendo um verdadeiro caleidoscópio temperado, lembrando uma prática que Schubert fazia em certa medida, e que hoje vemos também no pianista italiano Stefano Bollani. E outra prática que enriquece enormemente a palheta harmônica de seus arranjos é o uso proposital de “notas erradas”, empréstimos de tons distantes, sempre surpreendendo o ouvinte, assim como Shostakovich fazia.
Em certo trecho do recital, André apresentou em estreia mundial a peça De Tarde, cuja segunda parte Nazareth deixou incompleta, constando apenas a melodia não-harmonizada. Mehmari a completou transformando em uma peça profunda, repleta de significados. Brincou que, à maneira do IMS, também tinha criado um instituto cultural próprio, o “Instituto André Memória”, e distribuiu cópias deste arranjo para a plateia.
Não é preciso dizer que este show foi histórico. Mehmari mostra de uma vez por todas que a obra de Nazareth não é “de um mundo caduco”, mas sim matéria prima em ebulição pronta para infinitas releituras contemporâneas.
Tudo isso vocês poderão assistir no vídeo abaixo, e, esperemos, em um CD contendo todo este repertório!