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Berkeley, 26/11/12
Querido Ronaldo,
Puxa, achei você meio deprimido. Quase te convidei para tomar umas cervejas e comer um esquilinho frito, bem tenro.
Por que o horror? Se comemos com o maior prazer caranguejos-bebês ainda sem casca e porquinhos mal saídos da amamentação!
Clarice tem uma história formidável de uma galinha que ela adorava em menina e que foi morta e servida no almoço familiar. Ela começou a chorar, mas foi reparando no arroz branco soltinho, no molho pardo, foi se sentando à mesa, e ainda com as lágrimas escorrendo começou a devorar a amada, animadíssima, em êxtase. Depois pensou: e quando eu crescer tem os homens.
Veja como eu consolo a depressão dos amigos. Tratamento de choque. Mas não. Você está é um pouco triste. Esse negócio de dar os livros é de matar. Estive down no ano passado com a mesma situação, tive uns sonhos arrasadores.
(Aliás achei tristíssima aquela ideia de você devolver alguns livros e ficar contente por eles “retornarem ao lar”. Dá o que pensar).
Francisco Alvim, nosso poeta, é que jamais passaria por essa situação. Viajava em serviço com metade da biblioteca. Acho que já te falei sobre isso. Um dia, em Barcelona, perguntei: mas você vai ler todos esse livros em três anos? A Clara ficou rindo como quem sabe das coisas e ele disse: mas não é só para ler. É uma companhia. Quando estou mal, olho uma estante e penso: olha ali o Baudelaire, ah, que maravilha! E o Drummond, tão magrinho, espremido no ônibus, perdão, na prateleira repleta!
Outro leitor parecido é um amigo paulista, que só pode morar nos andares térreos dos edifícios, os milhões de livros pesam demais. Um engenheiro me disse que livro é como água, cujo peso é tremendo.
Mas nós passamos longe desse risco. Nos livramos dos livros e experimentamos um certo sentimento de culpa. Porque compramos demais, porque recebemos e passamos adiante, porque não lemos tudo.
Outro dia um excelente aluno salvadorenho me perguntou porque nós, brasileiros, chamamos de “sebo”, livraria de livros usados. Falei: não sei. Depois pensei um pouquinho, me lembrei do pau de sebo, todo untado, por onde os meninos tentam subir nas festas de S. João, mas sempre escorregam, contei isso a ele e disse: não tenho certeza, pode não ser isso, mas talvez seja porque os livros escorregam de umas mãos para outras, são passados adiante.
Ele sorriu e disse: será que é verdade? Posso confiar em você?
E eu: não, não confie. É só uma hipótese.
Ele: mas é engenhosa.
Eu, aliviada: isso é.
Agora vou te contar, Ronaldo, uma que me aconteceu no “Metido a Sebo”, título genial que o João Moura inventou para sua livraria de usados e que depois passou para o Marciano.
Eu estava uma manhã bisbilhotando no sebo, o Marciano me apresentou a uns vendedores de livros muito simpáticos, um deles também escrevia, e eu então o aconselhei a ler Natalia Guinzburg, no meu entender a maior escritora do século XX. Mencionei “Caro Michele”, que é um livro que releio todos os anos, pelo menos trechos dele. Mas o livro estava esgotado (a Cosac republicou há pouco tempo). Aliás, Ronaldo,você já leu? Se não, vou te dar de presente de Natal. Mas não vá fazer como fez com o livro do Louzada, hein? E ainda foi junto o “Repertório”, que acho realmente muito bom.
Está bem, está bem, não se zangue, compreendemos as fases turbulentas. Como dizem no avião: coloquem os cintos e não se levantem porque estamos entrando numa zona de turbulência. Zona de turbulência é de meter medo.
Bom, nisso o Marciano veio lá de dentro com um exemplar de Caro Michele nas mãos. Eu disse, me dá aqui, vou fazer uma dedicatória para nosso amigo, o livro é uma maravilha.
Quando abro, me deparo com uma dedicatória minha para uma ex-amiga da universidade. Dedicatória super carinhosa, dizendo que aquele era um dos livros de que mais gostava no mundo, mas também gostava muito dela e queria que ela o lesse.
Bom, fiquei deprimidíssima, meio tonta, perguntaram se eu não queria água (mas afogar mágoa não dá, mágoa sabe nadar, sabe até pegar onda). Resultado? Nada. Levei tempo pra superar a humilhação. Ela podia ter arrancado a página, claro. Mas gente sem sensibilidade é a treva, como diz a Virgínia.
Sua ideia foi brilhante: reenviar com aquele P.S. Mas raramente tenho presença de espírito, só no dia seguinte, quando o bonde já passou. Fico logo arrasada.
Você mencionou Obama e me lembrei logo de minha amiga catalã. Ontem houve uma manifestação em S. Francisco contra a remessa grátis de armas para Israel. Aurora, uma aluna, estava em minha office-hour, a um certo momento me disse: só tenho mais 5 minutos. Quando lhe perguntei o motivo, ela falou da manifestação e que precisava ir. Estava bem triste.
Quanto ao realismo, Ronaldo, segundo a dica que você me deu, acho que é muito difícil. É muito difícil um bom realista, porque não se trata de ser documental, ou de praticar um realismo de fachada, como dizia Adorno. Mas não quero falar disso, fica parecendo aula e eu já estou cansada de aulas. O semestre chega ao fim, os alunos preparam os trabalhos, as minhas turmas vão enviar-me seus textos por e-mail, anda chovendo muito, é outono, as árvores soltam as folhas que parecem de papel vermelho e amarelo, despedidas são sempre difíceis. Perguntam se vou voltar, digo “quem sabe?”, mas é provável que não volte.
Dizem que vão ter saudade, o seminário da pós está preparando uma festa em segredo, uma distraída me contou e disse aflita, “era segredo”, eu digo, “já esqueci, não ouvi nada”. Pedem também que eu escreva alguma coisa sobre o tempo vivido aqui, sobre a Califórnia. Digo que é muito difícil, não sei escrever assim.
Mas uma tarde, passeando no bairro com Luna, uma cadela negra inteligentíssima, a Laura começa a falar vagamente em esquecimento e nas coisas que vão desaparecendo. No dia seguinte escrevo um texto intitulado “Saudades da Califórnia”, com uma epígrafe de Robert Frost, poeta de S. Francisco. O texto fala de um escritor que recebe a incumbência de um editor para produzir um texto, mas ele não sabe escrever assim, tenta inventar assuntos, mas não tem certeza, não sabe, começa a falar de aranhas por causa de um livro que estava lendo (tinha que entrar bicho na história) de repente aparecem uma menina e um esquilo que estão perdidos num bosque, o bosque do esquecimento. Não sabem mais quem são, esqueceram até seus nomes, e porque esqueceram podem passear muito felizes, de braços enlaçados – não sei como conseguiram- mas caminhando distraídos, acabam atravessando o bosque, não há jeito, o tempo não para. Então eles recuperam as identidades, o esquilo foge assustado, a menina não sabe o que fazer, implora: vem cá.
Na última linha o escritor pede desculpas porque percebe que fugiu inteiramente do assunto.
Realismos, Ronaldo, realismos.
Beijo,
Vilma
* Na imagem que ilustra a home desse post: o poeta Robert Frost