Crônica de um verão crônico

Colunistas

04.02.15

Ninguém sabe ao certo quando começou o ritual de saudar a chegada do verão carioca como uma temporada de festa e alegria. Historicamente, o calor tropical quente e úmido expulsava os poderosos da cidade, deixando as altas temperaturas apenas para a plebe rude e suada. No Império e depois da República, os ares amenos de Petrópolis faziam as vezes de um clima europeu onde príncipes e presidentes se refugiaram da subida dos termômetros. Sobreviver ao verão carioca é um problema crônico. Ficar, viver, e sobretudo trabalhar na cidade do Rio de Janeiro nos meses de alto verão é para os fortes. Enquanto a elite brincava de Europa nas cidades serranas, aos pobres restava a velha falta d’água, que volta ao noticiário como novidade apenas porque somos uma cidade sem memória. Estão ali, cravados no cenário da Lapa, os arcos do aqueduto que pretendeu resolver o problema de falta d’água nos idos do século XVIII.

Mulheres na praia de Ipanema, com a Pedra da Ga?vea ao fundo. Jose? Medeiros, 1955 / Acervo IMS

O sol nas bancas de revista fez do verão uma notícia, uma temporada, e um modismo. Breve, fugaz, como são os modismos e como são os drinks leves à base de vinho branco gelado, que nem têm sabor nem deixam saudade quando partem para o esquecimento na lista dos “melhores da temporada”. Se o verão é monotemático e monocromático, se os 40 graus já foram superados pelos 50, se a falta d’água nas torneiras pode ser compensada com o banho de mar no ainda generoso litoral carioca, então saudemos o verão e todas as suas esquisitices. Uma delas é a total impossibilidade de aproveitar a cidade ao ar livre. Trancar-se em ambientes refrigerados é tão necessário que até os shoppings centers podem se tornar lugares agradáveis.

Águas calmas e mornas, pôr do sol sob aplausos efusivos, banho de mar noturno, conexão wi-fi nas barracas de praia, quitutes sazonais, sorvetes e cervejas artesanais – porque nem o verão escapa da gourmetização do mundo – fazem parte do ritual de calor e dor na cidade que em breve comemora 450 anos podendo se envergonhar de um recorde em seu longo processo de gentrificação. Nunca, em tão curto espaço de tempo, tantos de nós fomos expulsos de nossos ambientes – refrigerados ou não – em prol do estrangeiro.

A rigor, essa é a nossa história. Desde a chegada dos portugueses expulsando os índios, estamos gentrificando o Rio de Janeiro. E se a gentrificação caracteriza-se pela ocupação de áreas desvalorizadas por uma classe média abastada, não foi outra coisa a chegada da Corte em 1808. Gentrificou-se o centro do Rio de Janeiro em nome da europeização da cidade, a elite branca e rica abrindo ruas, fazendo obras e limpando o terreno, mandando para longe da vista os cariocas maltrapilhos, malandros e mulatos.

Estranhamente, a palavra gentrificação está registrada no Dicionário Houaiss apenas desde 2013, embora o equivalente em inglês – gentrification – tenha surgido nas pesquisas da socióloga Ruth Glass sobre Londres, realizadas no Centro de Estudos Urbanos e publicadas em “London: Aspects of Change”, aclamado livro de 1964. Cunhado a partir da palavra inglesa gentry – sinônimo de classe média abastada –gentrificar rima com expulsar. Desde que, no início da década, a cidade entrou no circuito de movimentação do capital internacional global, já gentrificamos muitas áreas pobres e agora estamos gentrificando também bairros mais abastados, onde o tradicional comércio de rua está sendo substituído pela maior concentração de hamburguerias por metro quadrado da história carioca.

Gentrificar também tem significado concentrar o acesso a serviços como rede de luz, água e esgoto. Por isso, seja lá o que quer dizer a expressão “volume morto” – hoje inscrita no nosso vocabulário graças ao total desprezo dos governantes pelas mudanças climáticas – a água é farta na cidade dos ricos e falta na moradia dos pobres (lata d’água na cabeça, lá vai Maria…)

A água hoje escassa já foi abundante no Carnaval. O então chamado entrudo era uma festa popular em que o ponto máximo da diversão era arremessar baldes de água nos passantes, o que agora seria considerado tanto um crime hídrico quanto um alívio. Proibido no século XVIII, o entrudo está na origem do Carnaval de rua no Rio, tido como revitalizado pelos blocos de rua que há pelo menos uma década reanimaram a folia. Na combinação entre samba e bom humor, meus títulos favoritos são Vem Ni Mim Que Eu Sou Facinha, Mulheres de Chico e, estreias da temporada 2015, Comuna Que Pariu e Bloco das Mulheres Rodadas. Não por acaso, são todos grupos femininos, desafiando os estereótipos – como fazem as Marchas das Vadias –, e politizando o carnaval. Porque nada no Rio de Janeiro é inocente. 

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