A natureza não-indiferente

Cinema

03.02.15

Se observamos apenas a história narrada de O segredo das águas (em japonês, Futatsume no mado, título que talvez possa ser traduzido como: Uma segunda janela), novo filme de Naomi Kawase, vemos como dois adolescentes aprendem a viver no mundo adulto. A his­tória tem algo de um tradicional romance de formação. A ação se passa numa al­deia da ilha de Amami-Oshima, situada no sul do Japão, entre Kyushu e Okinawa, onde “as pessoas veneram a natureza como uma divindade. Pensam que um deus vive em cada árvore, em cada pedra, em cada planta. E como se julgam protegidos pela natureza, procuram viver em harmonia com ela”, esclareceu a diretora no de­bate após a exibição no Festival de Cannes, em maio do ano passado.

Nesse tanto de romance de formação que contém, o filme acompanha Kaiko (os pais separados, ele vive com a mãe) e Kyoko (ela e o pai preocupados com a doença e provável morte da mãe em breve). O aprendizado se dá entre a morte de um des­conhecido por afogamento e os ciúmes do filho com os amantes da mãe. Entre a paixão de Kyoko pelo mar e o medo de Kaiko diante do mar. Entre a visita do filho ao pai, em Tóquio e as conversas da filha com a mãe. Entre os jovens que começam e não começam um namoro, a presença e os conselhos serenos do velho pescador Kamejiro (o “papai tartaruga”). Nas palavras da diretora o filme nos conta “como dois jovens aprendem a aceitar os outros, a tomar consciência do mundo que nos rodeia, a guardar na memória a experiência de vida das gerações passadas”.

Mas, se observamos também o modo de narrar, e não nos esquecermos dos impul­sos que levaram a diretora a realizar o filme (é seu oitavo longa-metragem de fic­ção, e o primeiro que ela filma fora de sua cidade natal, Nara) Futatsume no mado se revela mais próximo de um ensaio cinematográfico que de um romance de for­mação – um ensaio sobre (como queria Eisenstein) a natureza não-indiferente.

“O tema central é o assassinato dos deuses. Os deuses da natureza venerados em Amami, o mar, as montanhas, as plantas, deuses silenciosos que podem ser fa­cilmente mortos em nome de um assim chamado desenvolvimento”. Assim, na imagem, não só, nem principalmente, o que os personagens dizem e fazem, mas a paisagem de Amami: as árvores, as montanhas, o vento na vegetação, as grandes ondas que quebram na praia, o mar, sobretudo o mar, o fundo do mar, “a natureza com toda sua energia protetora, outras vezes, destrutiva, outras, basta lembrar o tsunami em Fukushima, e em toda a sua beleza, para não perder a consciência do mundo que nos rodeia”.

Esse tanto de filme-ensaio colado na história do aprendizado de dois adolescentes conduz o espectador a uma segunda espécie de romance de formação, um outro aprendizado, transmitido pela gente de Amami: “não estamos no centro de todas as coisas, somos uma parte do ciclo da natureza”. A diretora destaca o que pensa a gente da ilha: “para eles a fronteira entre a vida e a morte não está claramente marcada. As pessoas não choram a morte de um ente querido, veem isso como uma separação temporária no fluxo do tempo. A alma continuará a viver feliz e sorridente no país de Neriyakanaya”. Por isso mesmo, no filme, o “papai tartaruga” explica para os jovens que as pessoas na verdade não morrem, apenas retornam para a casa em que nasceram.

Um outro impulso para a realização do filme veio desse “sentimento esquecido da vida como um fluxo, uma continuidade transmitida de uma geração a outrá, que a diretora experimentou com a morte da mãe adotiva e a primeira visita à ilha de Amami. Sua avó e sua mãe nasceram na ilha, que até recentemente Naomi não conhecia. Nessa primeira visita ela estava grávida e a sensação de que voltava a suas origens e logo transmitiria ao filho que ia nascer o que recebeu da avó e da mãe, foi a imagem primeira, não formulada então com clareza, de O segredo das águas – obra que, ao contrário do que qualquer tentativa de análise pode sugerir, é mais sentimento do que razão, mais afetividade espontânea do que construção (como queria Leonardo) feita com ostinato rigore. Muito do filme foi improvisado nos locais de filmagem, por vontade própria da realizadora e por intervenção da natureza, pois durante as filmagens, em outubro de 2013, ao contrário das pre­visões, um tufão provocou ondas enormes em Amami e passou a fazer parte da história Kaito e Kyoko.

Filme na fronteira entre a natureza e a natureza-outra do cinema, O segredo das águas tem uma cena de extrema delicadeza: os últimos instante de vida e a morte da mãe de Kyoko, com os vizinhos, o pai e a filha cantando uma triste canção de despedida a pedido da mãe, e dançando seguida o alegre bailado de agosto que a devolve à natureza, ao paraíso oculto do outro lado das águas.

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