Quem comprou o Correio da Manhã no dia 2 de outubro de 1949, um domingo, pagou cinquenta centavos. De cruzeiro. Para outro mundo, outra moeda.
A primeira página tratava só de notícias internacionais. Séria crise entre a Iugoslávia (lembram?) e a União Soviética (lembram?) preocupava os leitores cariocas. Além da greve na indústria do aço – americana. E do problema das colônias italianas na África.
Nesse dia o leitor que folheasse vagamente as páginas do jornal encontraria nada mais, nada menos que “A máquina do mundo”. Com as pupilas gastas e os dedos sujos de tinta, talvez ele tenha lido então o poema que tempos depois seria apontado por muita gente como o mais importante de toda a obra de Carlos Drummond de Andrade.
Um arrepio dantesco terá percorrido a espinha do casual leitor, acomodado na sua poltrona, em casa, ou sacolejando no banco de um bonde, em trânsito, ou palmilhando o calçadão da praia de Copacabana. Os tercetos se sucediam, espaçados e elegantes, com o andamento clássico de uma já esquecida Greta Garbo.
Decassílabos vinham interromper a prosa de um domingo como outro qualquer. E as colunas espremidas do jornal de repente passaram a evocar o mundo solene das colunas de mármore.
Depois de ler sobre os engarrafamentos do Méier e considerar as dificuldades de Vasco e Fluminense naquela rodada, o leitor era agora convidado pelo poeta a lançar os olhos “no rosto do mistério, nos abismos”. Aceitará o convite?
Como pode uma folha diária abrigar tamanho portento? Poucas semanas depois, o mesmo autor, nas mesmas páginas, lembraria com indisfarçável ironia – numa crônica, não em poesia – que os jornais devem ser tolerados porque “servem para embrulho”. Será este, então, o destino moderno da velha “máquina do mundo” que tanto deslumbrou o herói Vasco da Gama, no final dos Lusíadas, de Camões? No dia seguinte, o oráculo da véspera embrulha o peixe…
O poema ocupava uma faixa vertical atravessando de cima a baixo a primeira página da “3ª Seção”. Era a página dominical de literatura. Lúcia Miguel Pereira comparecia com um artigo ferino sobre a “Campanha de analfabetização”. Eugênio Gomes comentava a publicação do livro Aparência do Rio de Janeiro, de Gastão Cruls. Os demais textos falavam de Robespierre, Romain Rolland e outros nomes. Que nomes? Todos estes, citados até agora, eram em 1949 tão reais quanto a Iugoslávia, a União Soviética e o cruzeiro.
Num canto inferior da página, foi impossível espichar a coluna que tratava da “arte da encadernação”. O espaço acabou preenchido por um anúncio pequeno de Fox, “o melhor calçado do mundo”. Se o poeta estivesse bem calçado, não sofreria tanto com a “estrada de Minas, pedregosa”.
Anúncios não faltavam naquela edição do Correio da Manhã. Surgiam no meio das páginas com a solenidade de uma “máquina do mundo” mercantilizada, prometendo de tudo e mais um pouco. Quem sofrer de nostalgia crônica verá hoje mais poesia neles do que no poema de Drummond, com certeza.
Afinal, bem naquela semana a Singer iniciava a “Semana da Costura”, e as lojas Sears comemoravam a “Festa da Primavera”. Além disso, se acontecesse “alguma pecúnia” ao leitor, talvez ele se deixasse tentar pelo ideal de uma “Nova Copacabana”, vislumbrado na página de imóveis: “Construa seu lar no Saco de São Francisco”.
Mas o leitor drummondiano de 1949 não sofreria nenhum espanto ao se deparar com a “máquina do mundo” pela primeira vez, em pleno Correio da Manhã. O poeta era colunista frequente do jornal desde o início da década. E era comum que sua colaboração em prosa se alternasse com poemas próprios ou de autores estrangeiros, por ele traduzidos.
Naquele domingo, “A máquina do mundo” tinha a sua primeira vida, em papel-jornal. Assim como uma crônica que depois trocasse de meios, resgatada pelo livro. Dali a dois anos, o poema seria reimpresso em papel de qualidade bem melhor, como o penúltimo texto da série impressionante reunida em Claro enigma. Era o livro lançado por Drummond em fins de 1951, com o selo da editora José Olympio. Começaria então sua segunda vida – que ainda promete durar muitas tiragens.
Fascinante, para o crítico atual, é notar que praticamente todos os poemas de Claro enigma foram publicados primeiro na imprensa cotidiana. A maioria saiu no Correio da Manhã, como se pode verificar na primorosa edição crítica da poesia de Drummond até 1962, preparada por Júlio Castañon Guimarães e recém-publicada pela editora Cosac Naify. Alguns saíram no Diário Carioca sob o pseudônimo de Leandro Sabóia – como o inusitado “Rapto”, que, explorando o mito clássico de Ganimedes, tematiza o homoerotismo.
Assim, o mesmo leitor da primeira versão de “A máquina do mundo” acompanhou passo a passo, através do mesmo jornal, o desenrolar de dois livros fundamentais da obra do poeta. Desde 1948 em diante, os poemas de Claro enigma foram sendo publicados aos poucos, intercalados com textos de uma refinadíssima prosa que, depois, seriam reunidos em 1952 no livro Passeios na ilha. Era uma versão mais ensaística da crônica drummondiana, também reeditada recentemente pela Cosac Naify.
São dois livros contemporaníssimos um do outro, Claro enigma e Passeios na ilha. Não por acaso, a comunicação subterrânea entre a poesia e a prosa de Drummond desse período é tão intensa.
O lugar dessa intensidade, porém, não se confinava às prateleiras. Pelo contrário, tudo começava nas páginas do jornal, junto com o noticiário cotidiano da cidade, do país, do mundo. Não havia contradição entre literatura e jornalismo.
Em “Divagação sobre as ilhas”, texto em prosa publicado no Correio da Manhã de 11 de dezembro de 1949, Drummond propunha um novo ideal de evasão: retirar-se para uma ilha “não muito longe do litoral, que o litoral faz falta” – mas também não tão perto do continente a ponto de se poder aspirar, de lá, “a fumaça e a graxa do porto”.
Por décadas a fio, desde a de 1940, Drummond fez da sua colaboração jornalística a sua ilha literária, onde seria possível divagar sobre as condições da vida no continente. Era uma ilha cercada de notícias, artigos e anúncios por todos os lados. Nela cabiam a prosa e a poesia, ao mesmo tempo.
O que é uma grande surpresa para os leitores de poesia que hoje desprezam o jornalismo. Assim como para os jornalistas que hoje baniram a literatura de seus jornais, a pretexto de proteger seus leitores contra convites inconvenientes como o de “A máquina do mundo”.
* Sérgio Alcides é Professor da Faculdade de Letras da UFMG.