Como observa Marlene de Castro Correia, dos poetas modernistas, ou ligados ao modernismo, Carlos Drummond de Andrade é aquele em cuja obra há o “maior número de alusões ao cinema”.1
Em seu primeiro livro, Alguma poesia (1930), chama atenção o breve poema “Sabará”, no qual o cinema, marco definitivo da modernidade, “irrompe no texto com as conotações de descontinuidade, de movimentação rápida, de veloz substituição de imagens, de produção de choques e surpresas, em discurso acessível mas sugestivo da especificidade da narrativa filmográfica e sua técnica de montagem”.
O presente vem de mansinho de repente dá um salto: cartaz de cinema com fita americana.
Do mesmo livro, vale citar também a última estrofe de “Balada do amor através das
idades”:
Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.
Nos versos, aliam-se os lugares-comuns românticos e o humour, graças a uma “consciência do papel do cinema na construção de um novo imaginário e de novos padrões de comportamento e sensibilidade”.2
Diante do espetacular mural de “Nosso tempo”, de A rosa do povo (1945), podemos pensar em Metrópolis (1927), de Fritz Lang. No filme, a cidade tanto dirige-se para o alto (seus prédios são cruzados por aviões) quanto baixa ao subterrâneo, resultando daí uma dimensão espacial alegórica das condições econômicas e sociais que representam: embaixo, os trabalhadores, os pobres, relegados à sombra; em cima, os patrões, a riqueza de um mundo excessivo e opressor. A metrópole criada por Fritz Lang, problemática, labiríntica, monumental, avassaladora, concentra todos os contrários, exatamente como a cidade de “Nosso tempo”.
Além de tema constante – explícito, subentendido ou incorporado à leitura por aqueles que conhecem o lado cinéfilo do poeta -, o cinema surge na obra drummondiana como um horizonte almejado pela própria forma. Ou seja, os versos não raro procuram o efeito cinematográfico. É o que se pode ver, por exemplo, no célebre “Poema de sete faces”, em que o poeta busca a velocidade e a simultaneidade próprias de cinema na sequência “pernas brancas pretas amarelas”.
Outro dado relevante é a paixão de Carlos Drummond de Andrade por dois grandes nomes da tela: Charlie Chaplin e Greta Garbo.
O primeiro aparece já em “O amor bate na aorta”, de Brejo das Almas (1932), numa imagem em que o célebre vagabundo é promessa de alegria capaz de fazer desaparecer as dores do amor: “Meu bem, não chores/ hoje tem filme de Carlito!”. E grandes homenagens ainda viriam em “Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”, de A rosa do povo (1945) e “A Carlito”, de Lição de coisas (1962).
Pode-se mesmo dizer, como o fez José Guilherme Merquior, que Carlito é “primo espiritual do gauche de Itabira”.3 Há cenas e gestos chaplinianos espalhados ao longo da poesia de Drummond. Cito mais uma vez Marlene de Castro Correia, que vê no poema “Sentimental”, de Alguma poesia, “uma inspiração – consciente ou inconsciente – em filmes de Chaplin”:
Ponho-me a escrever
teu nome com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
O emprego e a manipulação da sopa evocaria Carlito na medida em que este mantém com os objetos “uma relação marcada pelo desvio de sua função originária, socialmente codificada”,4 como na formidável dança dos pãezinhos de Em busca do ouro (The Gold Rush, 1925).
Vê-se que a relação com Greta Garbo era outra. Paixão cinematográfica também duradoura, a atriz esteve presente sobretudo em crônicas, uma delas ainda de 1930, quando Drummond usava, entre outros pseudônimos, o de Antônio Crispim, com o qual assinou “O fenômeno Greta Garbo”, texto publicado no Minas Gerais. A atriz, porém, seria exemplarmente celebrada em versos no livro-despedida Farewell (1996), em “Os 27 filmes de Greta Garbo”. No entanto, podemos “sentir” sua presença em outros momentos, como no extraordinário “O mito”, de A rosa do povo. Ali, o sujeito poético narra uma relação perturbadora e ambígua em torno de uma personagem – designada apenas “Fulana” -, que ele sequer conhece, mas em quem pensa e de quem fala obsessivamente. Em seu multifacetado retrato, ela emerge como uma espécie de mulher total, na qual se fundem registros românticos, traços da alta literatura, signos da sociedade de consumo e assim por diante. O conjunto, tão impreciso quanto arrasador, acaba por lhe conferir os dons da ubiquidade e da atemporalidade, característicos dos mitos:
Mas Fulana será gente?
Estará somente em ópera?
Será figura de livro?
Será bicho? Saberei?
Greta Garbo parece insinuar-se nos versos. Mas se o poeta não a teve em mente quando construiu seu poema, é certo que conhecia bem os mecanismos de criação e manutenção dos mitos, e a atriz encaixa-se perfeitamente no modelo que o poema de A rosa do povo põe em funcionamento. E em função mesmo de sua lucidez, o poeta podia ir além do reconhecimento do maquinismo ideológico produtor de mitos. Não por acaso, Fulana, ao final do poema, é humanizada, singularizada e tem seu nome substituído por “Amiga” num mundo “sem classe e imposto”.
Na crônica “O fenômeno Greta Garbo”, deparamo-nos com uma indeterminação muito próxima daquela do poema. A atriz é considerada, em primeiro lugar, como “feia”. E ainda:
Tem um corpo de tábua de passar roupa, depositado sobre dois pés enormes, nº 41 (dizem que Isadora Duncan não os possuía menores). Um rosto que não recomenda nem pelo brilho dos olhos nem pela correção do nariz nem pela exiguidade da boca. Criatura seca, pobre de curvas, rica de ângulos, e seguramente sem nenhum desses predicados que caracterizam e dão preço às nossas belezas de trópico. Beleza, talvez, para os esquimós, si o belo para o esquimó não fosse uma autêntica esquimó, e não uma cavalheira comprida e trágica, mórbida, antipática e artificial (…).5
O cronista, a seguir, afirma, no entanto, que não perde um filme da sueca, concluindo que, como todos, tem a sua “máquina sentimental” desarranjada por ela.
A partir daí, a indecisão desaparece. Ainda que decididamente desconfiado dos signos produzidos em série pela indústria cultural, Drummond manteve Greta Garbo resguardada da ironia de seus versos. Foi uma exceção. De certo modo, a atriz talvez lhe parecesse singular e humana apesar da máscara, ou exatamente por ela, como se o rosto guardasse, quanto mais se expunha, a mulher e não a máscara. Extrapolava a mera produção? Projetava para além da tela uma verdade e um mistério que eram uma mesma coisa e ela mesma? Por fim, a atriz-mito acabou por assumir um certo gauchismo quando se retirou da vida pública, fugindo dos olhos de todos, passando a viver “de capote comprido, chapelão e óculos escuros”. O poeta não poderia deixar de admirar tal gesto, que lhe parecera confirmar o caráter singular, humano, daquela mulher que nunca deixara de ser, à luz da admiração, muito mais que subjetividade inventada para o entretenimento:
Greta Garbo é muito mais do que Greta Garbo, e nada tem a ver com o mito publicitário, que de resto ela abominava, e de que soube se despedir com o mais severo pudor, passando a ser a mulher feia, de capote comprido, chapelão e óculos escuros, errante pelas ruas de Nova York, indiferente ao que digam ou pensem das ruínas de sua glória.6
Numa revisão última e de total limpidez, o mito se desfaz em favor de sua humanização definitiva. Tudo acontece como se a atriz deixasse de ser “Fulana” para se tornar “Amiga”. É o fim do mito – ou a compreensão de que ele nunca existira – a que assistimos em “Os 27 filmes de Greta Garbo”:
Como posso acreditar em Greta Garbo
nas peles que elegeu
sem nunca se oferecer de todo para mim,
para ninguém?
Enganou-me todo o tempo. Não era mito
como eu pedia.
O poeta chegou a inventar uma visita da atriz a Belo Horizonte; confessou, a seguir, sua “mentira”. E, assim, pelas crônicas e poemas, nós, leitores, fomos acompanhando, mesmo que fragmentariamente, os matizes de um enredo no qual o poeta se manteve como cinéfilo pelo menos na permanente admiração por sua musa absoluta.
Os fragmentos estão reunidos aqui, neste breve caderno, a que acrescentamos um saboroso episódio – registrado por Elvia Bezerra -, envolvendo uma grande amiga do poeta, Lya Cavalcanti.
Neste dia D, aniversário de Carlos Drummond de Andrade, nós o homenageamos fazendo nossos os seus gestos de imaginar, maquinar, vestir, amar Greta Garbo.
* Eucanaã Ferraz é poeta, professor e ensaísta.
* O texto acima faz parte caderno da mostra de filmes “Drummond homenageia Greta Garbo”, que acontecerá no Dia D, em 31/10/2012.
NOTAS:
1 Poesia de dois Andrades (e outros temas). Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p. 18.
2 Ibidem. p. 17.
3 Verso universo em Drummond. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976, p. 106.
4 CORREIA, Marlene de Castro. Op. cit., p. 19.
5 Cf. aqui, pp. 11-12.
6 “Aniversário”, cf. aqui, pp. 13-14.