Nos olhos de Degas

Cinema

26.05.14

Cena do filme “O salão de Jimmy”, de Ken Loach

Cannes. No festival, duas duplas de mestres do cinema politico: Ken Loach e seu roteirista Paul Laverty; e os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne. Na mostra oficial, outros diretores dedicaram-se a temas da atualidade política, mas nenhum como Loach (para quem “o cinema não modifica o debate político, mas pode provocar ressonâncias, levantar questões, desmontar preconceitos e sobretudo valorizar o dia a dia da gente comum”), nenhum como os irmãos Dardenne (para quem uma questão como “a rivalidade entre os assalariados, provocada pelo atual quadro de desemprego na Europa, não pode ser contada como uma luta entre bons e maus trabalhadores. Uma discussão política não pode se reduzir a uma aventura de heróis contra vilões”).

Jimmy’s hall (O salão de Jimmy), de Loach, com roteiro de Laverty, inspira-se num fato real ocorrido em 1933: a expulsão do irlandês Jimmy Gralton de seu país por suas ideias políticas, acusado de anti-cristo, por ter aberto um salão de dança em desobediência ao padre do condado de Leitrim. “Incidentes como esse se repetem ainda hoje”, comenta Laverty, pois não-conformistas como Jimmy estão sendo igualmente perseguidos como anti-cristos: Ai Weiwei, “o célebre artista chinês acossado pelo governo que não consegue controlar suas críticas e reflexões”; Julian Assange, “alvo de acusações pessoais graves, totalmente desproporcionadas, que minimizam no inconsciente coletivo os crimes contra a humanidade que ele e seus colaboradores tiveram a coragem de denunciar”; Edward Snowden, “que revelou como o Estado e as grandes empresas vigiam a vida das pessoas comuns, para citar exemplos mais conhecidos. Ou ainda Chelsea Manning, condenada a 35 anos de prisão enquanto filmávamos Jimmy’s hall por ter denunciado atos de tortura cometidos pelo exército norte-americano”.

Não se trata de voltar à expatriação de Jimmy Gralton, para nela sugerir uma outra, a da prisão domicilar de Ai Weiwei, a do processo contra Assange ou a do asilo de Snowden, por exemplo, mas, talvez, de aprender com esses fatos recentes como contar o que ocorreu na Irlanda em 1933. “A crise financeira de hoje provoca uma depressão econômica parecida com a do tempo em que Jimmy criou seu salão com um gramofone e discos de jazz. Foram dez anos de depressão e de desemprego em massa com a crise de 1929”, comenta Loach. “E hoje, com a esquerda incapaz de encontrar argumentos convincentes, o debate político se concentra entre os diversos partidos de direita, o que impõe à gente pobre golpes tão duros quanto os do tempo de Jimmy”.

A crise financeira desse começo de século, portanto, não como ponto de chegada mas como ponto de partida: o presente como instrumento ou ponto de vista para melhor observar e compreender o passado.

De certa maneira, esse filme inspirado num fato real inspira-se também no cinema: Jimmy’s hall continua a ficção de The wind that shakes the barley  (Ventos de liberdade, igualmente feito com roteiro de Laverty). Conta uma história ocorrida dez anos depois do término da guerra civil da década de 1920 na Irlanda. E dez anos depois daquele filme, o vento interrompido pouco após do comentário do fazendeiro aos dois irmãos do IRA – “depois da guerra esse país vai se transformar num buraco perdido infestado de padres” – volta a soprar em torno do salão de dança plantado por Jimmy no país infestado de padres.

“O poder dos padres era então incontestável”, lembra o director. “A igreja determinava o comportamento da comunidade, como o padre Sheridan de nossa história. Não queríamos caricaturar os padres: bem mais interessante imaginar um homem da igreja que, embora de uma agressividade feroz, não se resumia a essa característica, pois respeitava a integridade de seu inimigo. Permanecemos fiéis aos fatos históricos, nos inspiramos na vida e na época de Jimmy Gralton, mas fizemos uma ficção. Não uma biografia, mas uma história livremente inspirada na vida de Jimmy, entre outros motivos porque não se conhece muito de sua vida e de sua personalidade.”

No Arquivo Nacional de Dublin, o processo de expatriação de Gralton “misteriosamente desapareceu”, acrescenta Laverty. “Tomamos a liberdade de imaginar sua vida privada para compor um personagem rico e complexo, e não apenas uma caricatura e um militante.” Para o roteiro, pesquisas em jornais, visitas à pequena placa de madeira “em memória de Jimmy Gralton, nascido em Leitrim, expulso por suas convicções políticas em 13 de agosto de 1933”. Além disso, entrevistas com parentes de Jimmy. Laverty se sentiu “especialmente tocado pela lembrança que Packie Gralton guardava de seu primo Jimmy – ‘era um espírito livre… um espírito livre’ – pelo que isso significa numa época de intolerância e de uma grande crise econômica”.

A atriz Marion Cotillard no filme “Dois dias, uma noite”, dos irmãos Dardenne

Dardenne

Um aspecto da crise financeira e da depressão de agora, quase um retrato do ponto de partida (ou de vista) adotado por Loach e Laverty para contar a história de Jimmy, encontra-se em Deux jours, une nuit (Dois dias, uma noite), de Jean-Pierre e Luc Dardenne – nele, a direção de uma pequena fábrica, 17 funcionários, convoca os operários para votar a demissão de um deles e dividir o salário do demitido entre os demais, como bonificação. A votação indica a empregada de menor perfomance, Sandra, naquele instante, como em ocasiões anteriores, ausente para tratamento médico de um frequente estado de depressão. Avisada por uma colega que votara contra a demissão, Sandra passa o sábado e o domingo em busca dos colegas de trabalho para tentar convencê-los a renunciar à bonificação numa outra votação, na segunda-feira de manhã, para manter o emprego de todos.

“Há muito tempo pensávamos num filme em torno de uma pessoa despedida com o acordo da maioria de seus colegas de trabalho por ser considerada fraca, sem energia”, comentam Jean-Pierre e Luc, um proseguindo a frase iniciada pelo outro. “Sandra perdeu o emprego, mas não queríamos que ela fosse vista como vítima. É fragil, mas em sua fragilidade encontra a energia necessária para sair em busca dos colegas de trabalho.”

Por muitas razões, o trabalho dos irmãos Dardenne pode ser comparado com o de Loach, quase como se o filme de um funcionasse como um contracampo do outro. Numa certa medida, usam procedimentos narrativos semelhantes. Como Loach, os Dardenne filmam com intérpretes não profissionais – “Escolhemos os intérpretes de nossos filmes entre pessoas que se interessam pela história que vamos contar e nos locais em que vamos filmar”, diz Loach. “Não acreditamos em profissionais escolhidos por agências de casting, preparados por assistentes de direção e entregues ‘prontos’ para a filmagem” – Jean-Pierre e Luc poderiam usar essas mesmas palavras. Marion Cotillard, atriz convidada para Dois dias, uma noite, comenta sua surpresa, “os Dardenne não costumam convidar atrizes em seus filmes”, e sua felicidade absoluta com o trabalho, “um mês inteiro de ensaios”, e a atenção permanente e o grau de exigência dos irmãos – “eles trabalham cada detalhe, na filmagem concentram-se nos intérpretes”.

Loach e os Dardenne filmam com equipes reduzidas, em cenários naturais, com um mínimo de luz artificial. Ambos contam histórias do cotidiano do trabalhador comum, ou da gente comum que nem conseguiu entrar no mercado de trabalho, num estilo entre o documental (na construção dos planos e na direção de atores) e a ficção (na estruturação da narrativa como convite a um duplo jogo de espelhos para reconhecer o cinema como uma projeção da realidade e a realidade como uma projeção do cinema).

Para a ficção sobre Jimmy, Loach mandou construir um barracão com as medidas e características do Pearse-Connolly Hall da década de 1930, e se não no exato local em que ele existiu, num terreno vizinho – “a luz natural do salão era magnífica, poucas vezes fomos levados a acrescentar um pouco de luz, no mais era a luz natural que dava maior liberdade de movimentos aos intérpretes”. Para Dois dias, uma noite, os Dardenne passaram meses em busca dos cenários naturais que a história se desenvolveria, registrando cada canto com pequenas câmeras digitais, preparação para que a futura filmagem em planos-sequência ter toda a aparência de espontaneidade.

A diferença entre eles: enquanto os filmes de Loach se servem de um pedaço da realidade para nela representar também uma questão mais aberta que o imediatamente visível, os filmes de Jean-Pierre e Luc escolhem um pedaço da realidade para prender o espectador aí, para não deixá-lo escapar da questão imediatamente visível. Na passado de Loach, como um fora de quadro indicador do modo de filmar a expulsão de Gralton da Irlanda da década de 1930, o não conformismo de agora. No presente dos Dardenne, ele e ele mesmo, a demissão de Sandra, a Bélgica no centro do desemprego de agora.

Tal diálogo espontâneo entre esses filmes só se percebe, de verdade, com os dois exibidos lado a lado, como ocorre agora em Cannes. Num texto, e para um leitor que ainda não tem a imagem ao alcance dos olhos, o paralelo se reduz a uma simples indicação dos temas de O salão de Jimmy e de Dois dias, uma noite. Os filmes, porém, estão tanto nos conflitos quanto no modo de narrar. Para dar-se conta das semelhanças e dessemelhanças entre Loach e os Dardenne antes que esses filmes efetivamente sejam exibidos em nossos cinemas, é preciso trazer à memória imagens de filmes anteriores de Loach (Apenas um beijo / Ae fond kiss, 2004; À procura de Eric / Looking for Eric, 2009; Rota irlandesa / Route Irish, 2010; A parte dos anjos / Angel’s share, 2012, sem esquecer o já mencionado Ventos da liberdade / The wind that shakes the barley, 2006, todos com roteiros de Paul Laverty) e de Jean-Pierre e Luc (Rosetta, 1999; A criança/ L’Enfant, 2005; O segredo de Lorna/ Le silence de Lorna, 2008; O garoto da bicicleta / Le gamin au vélo, 2011 ). Ou delirar alguma visão a partir de uma tela de Degas.

Para filmar as cenas de dança de Jimmy’s hall, disse Loach, “em lugar de uma coreografia bem definida para a câmera e os dançarinos, deixamos os intérpretes dançar à vontade. Filmamos pensando nas Danseuses de Degas: como ele pintou de um ponto de vista ligeiramente acima das dançarinas, não estamos entre elas. Assim, também, porque colocamos a câmera no olho de Degas, observamos nossos dançarinos, não estamos entre eles, vemos a alegria nos rostos deles”. Esse mesmo modo de estar na cena mas a uma certa distância, um ponto acima de Sandra, é o que permite ao espectador, em lugar de estar entre ela e os colegas de trabalho, ver a tensão e a tristeza no rosto deles.

Outra possibilidade para um trailer, uma visão, ou um delírio antes da imagem viva na tela: para falar desses filmes de diretores muitas vezes premiados em Cannes é possivel desviar os olhos para o fora de quadro, para os anti-cristos que lutam agora contra o poder, como sugerem Laverty e Loach, ou não tirar os olhos do quadro de desemprego na Europa, como sugerem Jean-Pierre e Luc.

Assista aos trailers:

José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.

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