Em 1914, a Constituição da República Federativa do Brasil era uma jovem de 23 anos. Promulgada em 24 de fevereiro de 1891, instituíra a igualdade entre todos perante a lei, mas ainda parecia desconhecida ou incompreendida.
Caricaturistas utilizavam o personagem Zé Povo, sob diversas formas, para representar a população brasileira diante dos acontecimentos políticos e sociais nas revistas da época. Pesquisa no farto conjunto de periódicos da coleção José Ramos Tinhorão, sob a guarda do Instituto Moreira Salles, recuperou algumas charges e textos publicados n’O Malho e na Careta do carnaval de 1914.
O Brasil, sob comando do presidente Hermes da Fonseca, em seu último ano de governo, vivia a “política salvacionista” – destituição das oligarquias tradicionais, substituindo-as pelos aliados militares, principalmente nos estados do Norte e Nordeste -, com a justificativa de eliminar a corrupção. O cenário era de revoluções, tomadas de poder, bombardeios nas cidades do interior, desemprego, problemas de saúde e ordem pública, miséria, seca e muitos boatos relacionados ao governo.
O Carnaval de 1914 surge como acontecimento muito bem-vindo, tanto para o povo quanto para políticos; trégua para a realidade conturbada. Mais de cem anos depois, qualquer semelhança é mera coincidência.
O aniversário da Constituição caiu exatamente na “terça-feira gorda” de Carnaval. Momo venceu a disputa pela atenção popular e, como não podia deixar de ser, o aniversário da lei ficou em segundo plano. O texto abaixo, publicado na edição de 21 de fevereiro de 1914 da revista Careta, é exemplo disso:
A vida elegante
Estoura nas ruas, formidável, o rumoroso zé-pereira do Carnaval. […]
A vida elegante, nestes tumultuosos dias carnavalescos, transborda dos salões em que a alimenta a aristocracia e vem palpitar nas ruas, em contato com as classes populares.
O Carnaval, parodiando a nossa Constituição, que assegura serem todos iguais perante a lei, soberanamente iguala a todos perante o prazer, que por todas as classes reparte sem desigualdade.
Graças ao poder nivelador do Carnaval, a nossa Constituição, cujo aniversário coincide com a terça-feira gorda, será simbolicamente executada num dos seus artigos.
Na mesma edição da revista Careta, o assunto é retratado em poesia assinada por ninguém menos que… Pierrot:
O Carnaval e a Constituição
Os povos têm governos que merecem,
Assim predisse um sábio com firmeza;
Há povos igualmente que se esquecem
De usar dos seus direitos de defesa.
Todos avacalhados desvanecem,
Procurando esconder toda a dureza
D’um cruel despotismo em que fenecem
As forças, ante a rígida torpeza.
Felizmente entre nós, tudo é folia,
O povo é divertido sem igual,
Ultrapassa os heróis da fantasia!
Não há no mundo povo mais feliz,
Pois no dia maior do Carnaval
Festeja a mãe das leis do seu país.
Ainda que os problemas de cunho político e social se repitam mais de um século depois, está aí o Carnaval, cuja única lei é a alegria.