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Querido Ronaldo,
Sua carta foi uma torrente arrastando uma porção de sugestões de peças: as etapas oralizadas da paixão (credo!), ou o conto dos amantes no restaurante, fisgados pelo celular – todos caberiam muito bem numa comédia. A crônica do sonso-coxismo também, porque ela cobre os espaços mais diferentes com diferentes atores, além dos que você citou. Por exemplo, alguns professores das universidades públicas também dizem que só merecem um “vale-coxinha” com a ajuda que recebem para o supermercado – acho isso estranhíssimo, embora não tenha nada contra. Mas também acho estranho que os aposentados não recebam a tal coxinha. Será que os poderes acham que eles não precisam mais comer? Ou que comem pouco? Ou que precisam se espiritualizar, já que supostamente estão com o pé na cova?
É bom lembrar a resposta de Rocinante, o pangaré do Quixote, a outro cavalo (acho que o de Carlos Magno), que tinha feito o seguinte comentário ao que ele dizia:
– Es que estás metafísico!
– Es que no como – respondeu Rocinante.
Lição para se meditar com algum cuidado diante dos famintos verdadeiros. Se o argumento pega…
Fico com história da Juju – também dá samba – que apesar de aposentada em São Paulo, estava dando um curso em Santa Catarina. Talvez houvesse santo demais na história, a proteção não funcionou. Ou talvez os dois santos fossem parentes daquele anjo-da-guarda dos nossos índios. Segundo Murilo Mendes, esse tal anjo só vivia em Paris, “arejando”, não protegia nada nem ninguém.
Mas também estou metafísica, é que ainda não jantei.
O fato é que Juju esqueceu de comparecer à faculdade no mês de seu aniversário, que era justo aquele, para fazer o tal recadastramento, isto é, para assinar o atestado-vida, quer dizer, tinha que comparecer para provar que não estava morta. Tudo bem, sem isso talvez haja a maior corrupção, gente viva recebendo dinheiro de gente morta etc e tal.
Mas um belo dia, se dando conta de que não assinara o tal atestado, Juju telefonou para a secretaria encarregada do assunto, dizendo: estou trabalhando aqui, no mês que vem chego e assino. Aliás nessa época estou numa banca de doutorado aí na faculdade.
– Ah, não pode, seu mês de aniversário é este, não pode assinar no mês que vem.
– Mas você não me conhece? Não está falando comigo? Não identifica minha voz? Não vou estar numa banca aí no mês que vem? Não sabe que estou viva?
(Juju desconsiderou o fato de que para morrer, bastava estar viva)
– Claro, conheço a sua voz, mas não se trata disso, é a lei, será que a senhora não entende? Tenho que enviar todos os atestados no último dia do mês. Im-pre-te-ri-vel-men-te.
Juju insistiu, acho que ainda tinha esperanças no famoso jeitinho.
-Mas não pode explicar, dizer que estou trabalhando longe? Não posso abandonar o curso, sair assim de repente…
– Olhe, dona Juraci, lei é lei, depois vai sobrar pra mim. É por isso que este país não vai pra frente…
Juju bateu o telefone numa vertigem e me ligou em seguida pelo Skype, desesperada, também por ter batido o telefone. Era contra seus princípios. Explicou aos gritos que ia gastar no avião o que receberia no trabalho extra, além daquele estresse todo. Podia mesmo ter um treco no coração.
– Calma, Juju.
Bom, nada disso, Ronaldo, se compara a suas épicas descrições da praça que custou 55 milhões dos cofres (nossos?) e se apresenta completamente despida (isso não é um verdadeiro atentado ao pudor?) ainda por cima tomada pela falange cor-de-rosa e pelos skatistas, num paraíso com hora marcada. Passei do espanto ao pasmo, como diz a Margarida.
É isso aí, a gente não enxerga os próprios códigos. E então voltamos pra Berkeley. Talvez eu tivesse facilitado uma interpretação um pouco engomada, sobre o que contei sobre a permissão para rir em sala de aula. São apenas códigos. O fato é que minha relação com eles cada vez é melhor. Fazem todos os trabalhos, às vezes os refazem a meu pedido e com muito boa vontade. Acho que estão melhorando muito no português, que é o que eles querem. Além disso, têm humor, ao lado da crítica.
Eu estava sentada com uma aluna num banco do parque ao redor do campus, dando uma ajuda na leitura de um poema. Era office hour, mas decidimos ir lá para fora, porque estava um dia lindo. Os esquilos passavam de um lado para outro, subiam e desciam de árvores, com aqueles pontos de interrogação dos rabos aparecendo e desaparecendo.
De repente um deles parou diante de nós e ficou nos olhando fixamente, sem se mexer, durante muito tempo.
Interrompemos a leitura do poema.
Então ela me perguntou.
– Você não acha que devemos denunciar esse bichinho aí por bullying?
Caimos na gargalhada. O esquilo, por sua vez, desapareceu na primeira árvore a seu alcance.
Ele devia saber que era bom não facilitar. Brincadeira tem hora.
Até a próxima, Ronaldo. Amanhã tomo um avião e vou a Brown, à universidade. Recebi um convite, não sabia que era tão longe daqui. Mas domingo estarei de volta.
Abraço,
Vilma
P.S.: a Rita Chaves me mandou a matéria da Veja sobre Hobsbawm. É de pasmar que o Brasil ainda tenha essa choldra, palavra que precisa ser desencavada em ocasiões como esta.