Em lugar nenhum

Correspondência

05.04.12

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Chico,

Confesso que adiei ao máximo o momento de te escrever. Há forças que nos fazem abrir a janela e outras que te impelem a dar três voltas no trinco da porta. Minha vida sempre foi uma gangorra entre esses dois momentos: a necessidade de buscar interlocução e a vontade de silêncio, sumiço. Entre sair e trancar. O problema, aliás, é justamente esse “entre” – é ele que faz o sujeito fissurado. Estar aqui sem estar, sentir que pode viver todas as vidas e, no momento seguinte, ver-se incapaz de viver a própria. Esse tipo de desejo de fuga não é daqueles que te levam a uma vida nova em Chicago. Bastante ao contrário: trata-se da fuga total, de ser expulso “da raiz de todo o passado e de todo o futuro”. Tudo é potência. Nada é potência.

Não conseguir passar mais de dois meses ininterruptos na sua cidade não ajuda. Sentir-se em casa do outro lado do mundo, em lugar nenhum, quanto mais longe e só, não ajuda. Sentir sincera repugnância (um estágio bastante inferior ao desprezo, perceba) pela sua cidade, pelo estado de coisas da sua cidade, pelo o que se escuta e se lê dos cidadãos sua cidade histérica (lembro do Fizgerald, “cidadãos que, na distorção do seu novo status, tinham o valor humano de pequineses, moluscos, cretinos ou cabras”), definitivamente não ajuda.

Veja que estou reclamando sem reclamar. É uma constatação: se a vida nos últimos dez anos me soa como um acúmulo de experiência, cinismo e certo desperdício, não tenho a quem culpar. O cara esquisito no metrô sou eu. Esse deslocamento me deu muitas coisas, especialmente um tipo de solidão que talvez, em alguns romances ou décadas, a justifique. Se não, imagino que tudo isso seja uma enorme extravagância e vou me arrepender de não ter prestado um concurso ou começado carreira num escritório refrigerado aos vinte e poucos anos de idade, como a gigantesca maioria das bem adaptadas pessoas que conheço.

Há duas semanas peguei o metrô no meio do paliteiro de Hong Kong e vim para a Ilha de Lantau. O céu de março aqui é branco como uma folha de papel e, quando o trem foi cuspido para fora de um túnel rumo a uma ponte sobre uma baía margeada por prédios de 80 andares e um porto, dizer que aquilo parecia um sonho não é exagero: o vagão deslizava entre as nuvens. Depois, o trem seguiu margeando uma autoestrada antes que eu saltasse em Tung Chung e pegasse um ônibus que seguiu por uma serra cheia de árvores, belas praias no sopé das encostas e búfalos atravessando a pista até Ngong Ping. Se não fossem os búfalos, o silêncio e a paz, eu poderia jurar que aquilo era o Brasil.

Vim pelo Monastério de Po Lin e seu famoso Tian Tan Buda, um dos maiores da China, uma construção com 35 metros e 250 toneladas de bronze no topo de um morro. Depois dessa experiência asiática, acredito que todas as igrejas cristãs me parecerão daqui para frente de um exotismo e violência quase insuportáveis. Nelas, há sempre um homem que sangra e diz: “sou melhor do que você porque sofri, e sofri para purgar os seus pecados, e os seus pecados…” – bem, você conhece a ladainha. Do outro lado do espectro e do mundo, há um Buda que sorri e diz: “eu tenho um caminho.” O Buda não te condena, culpa ou sequer tenta te convencer de nada. Apenas te oferece um caminho, que não depende de qualquer deus ou dele mesmo – apenas de você. Da sua ação.

Quando cheguei ao monastério, os visitantes e turistas já iam embora, passava do horário do fechamento. Um monge se aproximou, interrompeu seu trabalho de varrer as cinzas dos gigantescos incensórios e perguntou essas perguntas que se fazem aos viajantes. Depois, ofereceu-me um chá. Tiramos os sapatos e entramos no refeitório, um pavilhão sóbrio em contraste com o templo central do monastério, suas estátuas douradas e teto vermelho. O inglês do monge era muito ruim e, depois desse curto introdutório, passamos 15 minutos em silêncio. Os pássaros começaram a cantar uma música grave, a luz caiu. O homem levantou-se, pediu que eu o seguisse e, no prédio anexo, me ofereceu uma chave na frente de um pequeno armário.

A dificuldade de te escrever essa carta surge também desse pequeno e representativo evento. No monastério não há luz. Muito menos computador – e você precisa experimentar um dia o que é passar duas semanas sem abrir o correio. Estou usando o da loja de lembranças do Tian Tan Buda e a senhora me olha com ar de desagrado – não sei se pelo tempo ou pelo meu ar pesado. O ar pesado que eu ganho quando escrevo.

Se cuida aí, Chico. Saudades do amigo.

Abraço,

JP

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