Heleno, touro domado

No cinema

06.04.12

Ouço opiniões divergentes, não raro opostas, sobre Heleno, o filme de José Henrique Fonseca dedicado ao craque Heleno de Freitas, que brilhou no Botafogo nos anos 40.

Só para citar alguns colegas que admiro, o cronista esportivo Juca Kfouri, na Folha de S. Paulo, sentiu falta de futebol na tela; por sua vez, Inácio Araujo, em seu blog, queria uma definição mais clara do caráter do protagonista (e mais ardor nas cenas eróticas). Já Ely Azeredo destacou em O Globo os closes de Rodrigo Santoro, reveladores da alma de Heleno. Por fim, Carlos Alberto Mattos, em seu blog, cunhou uma expressão feliz: “é um filme sobre um fantasma ainda vivo, patético e desesperado”.

Em suma, parece que cada crítico/espectador espera uma coisa de Heleno. Alguns saem frustrados, outros satisfeitos.

Alinho-me entre os que gostaram do filme, mas não pretendo propriamente fazer a sua defesa, e sim destacar alguns aspectos que me parecem relevantes.

O território do mito

O primeiro deles é a fotografia de Walter Carvalho. Não é o caso de elogiar sua evidente beleza, mas de buscar o seu sentido no conjunto do filme. Por que a opção por um preto e branco estilizado, fortemente contrastado na maior parte do tempo, com uma luz ocasionalmente “estourada”? Não se trata, a meu ver, da mera tentativa de adequar a imagem à ideia de reconstituição de época, de registro documental, de simulação do “Rio antigo” que vemos em fotos e cinejornais. Menos ainda de fetiche estetizante.

O objetivo é outro: retirar o personagem do terreno da história factual e inseri-lo no espaço do mito. Só a limpidez do preto e branco permitiria essa operação. No filme em cores, como disse Truffaut, “a feiura entra por todos os lados”. Mais do que a feiura, entram os resíduos, a “sujeira”, os “ruídos” do real.

O ponto máximo desse processo de depuração daquilo que não é essencial, daquilo que não pertence, em suma, à ordem do mito, é a cena, logo no início de Heleno, em que o craque e seus companheiros de Botafogo sobem as escadas do túnel em direção ao campo de jogo. Não vemos os degraus, nem as paredes, só os atletas, galgando o branco vazio, até que o plano se fecha no ídolo. É a própria imagem da estrela solitária que simboliza seu time.

Um procedimento semelhante, diga-se entre parênteses, pode ser observado no belíssimo documentário Futebol (1998), de Arthur Fontes e João Moreira Salles, em que os depoimentos de jogadores míticos do passado (Didi, Zizinho, Nilton Santos etc.) são filmados em preto e branco, com os entrevistados em destaque contra um fundo branco infinito.

O craque e o touro

Muito já se falou sobre a proximidade entre Heleno e Touro indomável (1980), a obra-prima de Martin Scorsese em torno do boxeador Jake LaMotta. De fato, a referência é incontornável: ambos tratam de atletas impetuosos e autodestrutivos; baseiam sua força dramática na entrega e na transformação corporal de seus atores protagonistas (Rodrigo Santoro e Robert De Niro); subvertem a cronologia, alternando momentos diferentes da trajetória do herói; lançam mão de recursos estilísticos semelhantes, como a câmera lenta, os supercloses, o uso da ópera na trilha sonora e, claro, a fotografia estilizada em preto e branco.

É evidente que são duas obras incomparáveis, mas levar um pouco adiante o cotejo entre as duas talvez ajude a entender outras qualidades e limitações de Heleno.

No caso do Touro indomável, há, por assim dizer, uma tendência que contrasta com a vertente mítica e a complementa: a tendência realista, ou até neorrealista. Refiro-me a toda a parte (a mais extensa) do filme que descreve a vida de LaMotta em seu habitat, a Little Italy de Nova York: a relação com o irmão, com a mulher, com os gângsteres que dominam a área. Nesta cena, um exemplo da pegada realista de Scorsese:

http://www.youtube.com/watch?v=dS5eez_f4d8

Nada disso se vê em Heleno. A própria vida pessoal do craque é reduzida a uma essência deliberadamente chapada. Toda a sua relação com os companheiros de time é condensada na ambivalente amizade com Alberto (inspirado no jogador Otávio e encarnado por Erom Cordeiro); toda a relação com a cartolagem se resume a um par de diálogos com o presidente do Botafogo, Carlito Rocha (Othon Bastos); toda a sua atuação dentro de campo cabe num Botafogo x Fluminense jogado sob a chuva.

O Heleno do filme tem só duas motivações: as mulheres e o futebol. Deliberadamente, omite-se ou passa-se apenas de raspão por questões como os bastidores dos clubes e federações, as relações dos jogadores com o rádio, a imprensa e a publicidade, os preconceitos culturais e sociais da época.

Mas há, por outro lado, delicadezas dignas de nota. Uma delas é a escolha da trilha sonora, com sua alternância de boleros, Billie Holliday e Mahler (na tocante sequência dos créditos finais). A melodia de Último desejo, de Noel Rosa, com diferentes arranjos instrumentais, se insinua em vários momentos, pontuando e comentando as cenas românticas com sua metafísica do amor.

Futebol essencial

Quanto à presença relativamente escassa de futebol propriamente dito no filme, a explicação é simples: há poucas coisas mais difíceis de encenar do que lances de uma partida de futebol. Como disse Ugo Giorgetti, ao explicar por que se ateve basicamente ao entorno dramático do esporte em seu Boleiros, no Brasil até mesmo o espectador que não costuma acompanhar futebol percebe a falsidade de uma jogada encenada.

José Henrique Fonseca driblou a dificuldade de modo admirável: filmou fragmentos dos lances, decompôs os corpos e os gestos dos jogadores, enquadrando-os ou da cintura para baixo ou da cintura para cima, quase nunca de corpo inteiro. Reteve a beleza plástica dos movimentos sem denunciar a sua artificialidade.

Sim, o futebol – quero dizer, o campo de jogo, os atletas uniformizados, a bola – aparece pouco em Heleno, mas, quando aparece, é com a intensidade da poesia, do sonho e do mito. E sua reverberação contagia dramaticamente todo o filme.

Quem quiser saber um pouco sobre o craque galã e espiar como foi a preparação de Rodrigo Santoro para o papel, este clipe do Esporte Espetacular serve como um making of:

http://www.youtube.com/watch?v=etWImNspeJU

* Na imagem que ilustra esse post: Rodrigo Santoro no papel de Heleno de Freitas

, , , , , , ,