Com 15 minutos de atraso, um Keith Jarrett que parece minúsculo entra no palco do Teatro Municipal. Reluzente, o Steinway está no proscênio. A cortina vermelha permanecerá fechada. Depois de agradecer aos aplausos, ajeita o banco em frente ao teclado, como se buscasse um centro ideal. O surfista velho ao meu lado cochicha com a mulher: “Cara marrento”. Tenho vontade de me meter: “Isso é pra quem pode, mermão” – mas quanto menos ruído melhor.
A tensão está no ar. E é muito bem vinda, é pedagógica para a falta de educação geral das plateias. Lembra, por exemplo, que assistir a um concerto pode e deve ser uma ocasião especial, que requer concentração, celular desligado e controle do pigarro. Assim como João Gilberto, Jarrett está sozinho no palco e quer que só prestem atenção nele. Ou melhor, que simplesmente ouçam o que ele também ouvirá pela primeira vez.Exigência recompensada pelo que se seguirá.
O início é exploratório. Acordes soltos, dissonantes. Gemidos, muitos. A incômoda posição, meio sentado, meio em pé que sustenta como um improvável iogue suingueiro enquanto marca o ritmo com o pé. A um dado momento, mergulha no piano e batuca na madeira, batuca entre as cordas. John Cage também tocava direto no coração de seus “pianos preparados”, nos quais inseria parafusos, pedaços de madeira ou borracha.
O piano de Jarrett é como qualquer outro. Acaso e dissonância virão mesmo do esporte radical a que se submete há quase quarenta anos, desde o “Köln Concert”: encarar plateias sem roteiro ou bússola.
Foi assim que começou na última quarta-feira. De início, alternava improvisos mais rítmicos e percussivos com aventuras líricas, quase românticas. Logo não haveria previsão possível para o tema seguinte. Não adianta buscar padrões e regularidade nos concertos de piano solo e, na medida em que “esquentava”, Jarrett tornava-se mais imprevisível e surpreendente, encerrando abruptamente e, em duas vezes, interrompido involuntariamente pelos aplausos – não sem resmungar, é claro, com a reação “fora de hora”. Mas foi ele mesmo quem propôs o jogo: ali não há tempo e hora certos.
O “toque de Jarrett”, sua assinatura, faz com que diversos fragmentos pareçam familiares. Não é déjà vu, não é citação: no palco, ele fala a sua língua, irredutível a qualquer outra, reconhecível para quem já a ouviu antes. Repete e reitera, sabendo ou não, tanto faz, a ideia de Rilke: a música começa “em algum lugar no inacabado”.
E é de lá, desse lugar, que sai o primeiro tema que reconheci, “La valse des lilas”. O clássico de Michel Legrand entrou para o songbook americano como “Once upon a Summertime” com letra de Johnny Mercer e chegou ao Brasil pela versão de outro craque, Ronaldo Bastos, que a recriou como “A minha valsa” para a voz de Nana Caymmi. Primeira de uma sequência de standards, a valsa lembrou que tão bom quanto Jarrett improvisando livremente é Jarrett improvisando livremente e, também, a partir de “Samba de uma nota só”, “Summertime” e “Over the Rainbow” – as duas últimas no bis.
Os jazzistas radicais preferem o Jarrett dos concertos livres ao dos standards. Acho impossível decidir se o mais difícil é inventar a partir do nada ou do já conhecido. E a dúvida, no que depender dele, continuará irresolvida.
Ao atender pedidos da plateia e, no segundo bis, mandar “Over the Rainbow” depois de uma lindíssima introdução, Jarrett conseguiu uma comoção inimaginável para canção tão surrada. E, também, o silêncio mais radical de todo o concerto. A plateia, educada pela tensão, desarmada por seus voos, prestava um tributo que não cabe em aplausos entusiasmados ou gritos. Finalmente, a música.