Chico, seu pai e seu irmão

Literatura

25.11.14

É muito fácil gostar de um livro de Chico Buarque. E é muito fácil detestá-lo. A despeito de si mesmo, o Chico Buarque ídolo precede o escritor. Para os fãs, tudo o que vem dele é genial, mesmo que muita gente boa tenha que suar a camisa para enfrentar sua prosa intricada fingindo que é o refrão de “Vai passar”. Para o time contrário, continua valendo de alguma forma a sentença do mais míope de nossos críticos, que em 1991 recebeu Estorvo lembrando que “literatura” era coisa de “escritor” e não de “cantor”.

Chico Buarque lê trecho de O irmão alemão em vídeo de divulgação da obra

Tirar Chico Buarque da frente de sua obra literária é, portanto, um trabalho para Hércules. Ou mesmo para Sísifo. Mas no que depender de O irmão alemão, os heróis mitológicos podem tirar uma folga assoviando “Quem te viu, quem te vê”. Boa parte do que está ali vem da história de Sérgio Buarque de Holanda e do filho que teve em Berlim antes de se tornar um dos mais importantes historiadores do Brasil. Muito antes de ser, para alguns, “o pai do Chico”.

Tratar a matéria bruta da própria vida como base para a fabulação faz parte de uma das mais tediosas discussões literárias dos últimos anos, que atende pelo nome de “autoficção”. Se, como dizia Millôr Fernandes, tarado é o homem que pensa como os outros mas é pego em flagrante, o autor de “autoficção” é o escritor que age como todos os outros, mas quer ser pego no flagrante da livre pilhagem de sua experiência em sua obra. Para logo desmentir, em entrevistas e artigos, que tenha decalcado uma na outra, muito frequentemente desdenhando o intérprete que estabelece as associações.

Chico Buarque não deu entrevistas e está claramente pouco preocupado em virar tema de congressos literários paroquiais. Mas a ostensiva cobertura jornalística do lançamento presta um grande desserviço a O irmão alemão, de árvores genealógicas dos Buarque de Hollanda às referências a W. G. Sebald, num arco de motivações que satisfaz tanto a cultura de celebridades quanto as obscuras publicações acadêmicas. O grande risco de Chico não é, portanto, ser incompreendido ou causar estranheza, mas de ser compreendido demais, demasiadamente codificado, risco que não corria em seus dois melhores livros, Benjamin (1995) e Budapeste (2003), ambos opacos a qualquer associação extraliterária e solidamente realizados. 

Quando bem sucedido, o jogo entre vida e obra (ou testemunho e invenção) depende de uma generosa área de sombra. É da dúvida que ele se alimenta, de Santa Evita, ficção de Tomás Eloy Martinez elogiada aqui como reportagem, a O encontro marcado, o superlativo romance de Fernando Sabino. A exposição midiática “da verdade por trás do livro” e a própria história de Chico e Sérgio deixam pouca margem de manobra para Francisco Hollander, o narrador, que vive intensamente a São Paulo dos anos 1960, retratada em detalhes didáticos, e chega diluído numa prosa quase jornalística na Alemanha de 2013, onde finalmente determina o paradeiro do irmão, Sergio Günther.

A juventude de Ciccio, que assim é chamado por Assunta, a mãe italiana, é cem por cento Chico Buarque, o escritor: narrativa nervosa, um humor gauche muito peculiar, a perambulação pela cidade, as mulheres como musas ambíguas. Mas o amadurecimento do personagem vai drenando a mão firme do estilista, que atropela tempo e espaço, como se quisesse logo chegar ao final, quando o tom soa protocolar na busca do irmão – toda ela autenticada num breve pós-escrito e na “nota” que faz o making of, extraliterário, de sua busca.

Trata-se de uma grande história que resulta em uma narrativa pelo menos um ponto abaixo de suas possibilidades. Lembra muito um livro que criminosamente continua inédito em português, Traiciones de la memória, em que o colombiano Hector Abad Faciolince narra uma peculiar busca da figura paterna, caçando pelo mundo a autenticidade de um poema de Jorge Luis Borges que o pai mantinha no bolso, copiado à mão, quando foi assassinado por grupos de extrema direita. Assim como a história dos Sergios, é tão brutalmente real que parece ficção, além de suscitar ainda reflexões importantes sobre escrita e memória.

Os fãs de Chico Buarque vão adorar O irmão alemão. Seus detratores, como sempre, atribuirão o êxito do livro à sua condição de ídolo popular. Estes, mas também aqueles, estarão cometendo assim uma injustiça com um grande escritor, que desta vez poderia ter ido muito mais longe.  

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