Ruy Guerra e dois filmes em portunhol – por Eduardo Ades

19.08.11

Neste sábado, dia 20, em parceria com a Associação Brasileira de Cineastas (Abraci), o Instituto Moreira Salles presta homenagem aos 80 anos do diretor brasileiro Ruy Guerra (clique aqui para saber mais). O texto abaixo de Eduardo Ades, que integra o folder da programação de agosto do Cinema do IMS-RJ, analisa os filmes Estorvo (2000) e Veneno da madrugada (2005).

 

Nas duas últimas décadas, Ruy Guerra realizou apenas dois filmes no Brasil: Estorvo, que chegou aos cinemas em 2000, e Veneno da madrugada, lançado em 2005. O primeiro foi relativamente bem sucedido junto à crítica brasileira, o que já não aconteceu com o segundo. Voltando a esses filmes hoje não é muito simples compreender a reação da crítica, a não ser que levemos em consideração o conjunto dos filmes brasileiros de cada ano. Da mesma forma que os filmes precisam ser analisados dentro do contexto de sua época, o mesmo acontece com a crítica.

Estorvo foi lançado ainda no início da Retomada, cinco anos após Carlota Joaquina. O cinema brasileiro estava apartado do público, procurando reelaborar sua estética e, principalmente, seu diálogo com as plateias. Esse era o caminho trilhado tanto pelos cineastas mais associados ao cinema comercial, como é natural que seja, como por aqueles associados ao cinema de arte. Assim, para citar os exemplos mais conhecidos, foram feitos filmes como O que é isso companheiro? e Central do Brasil, Bossa nova e Baile perfumado. Todos, com exceções muito pontuais (como Julio Bressane), procuravam uma forma mais correta e, especialmente, uma certa eficiência narrativa. Entretanto, ao invés de seguir por esse caminho, Ruy Guerra optou por realizar seu filme em uma direção radicalmente oposta.

Estorvo é um filme de angústia, ou até mesmo um filme-angústia. Um personagem sem nome (Eu), quase sem passado e sem lugar no presente. Um personagem em fuga. E sem destino. É fácil supor que o filme tenha tido uma recepção difícil do público da época, mas o que chega até hoje são as críticas, que apreciaram o filme e que deixam claro talvez sua maior qualidade: o filme foi uma novidade enorme no cinema brasileiro do ano 2000. Há um alto grau de inventividade, que era algo pelo qual a crítica ansiava – e talvez também uma determinada parcela do público.

Em primeiro lugar, chama a atenção a fotografia de Marcelo Durst, que abre o filme com uma imagem pouco nítida, distorcida. As distorções óticas aparecem em diversos momentos, além de hábeis truques de iluminação, que criam uma perfeita ambientação para o decurso de uma trama quase inexistente. Através da decupagem e do trabalho de filmar, por diversas vezes, apenas fragmentos com a câmera em movimento, cria-se uma espacialidade mal definida, seja na composição interna das sequências, seja na invenção de uma geografia urbana abstrata, fundindo Rio de Janeiro e Havana. Também a matéria temporal é tratada sem reverências, sem convenções narrativas, sem marcações estilísticas: o tempo transcorre de forma não-linear, podendo retroceder dezenas de anos para um flashback, sem que isso fique completamente claro. Mas, acima de tudo, há algo que colabora para causar o maior estranhamento de todos: as vozes.

O protagonista “Eu” é interpretado pelo ator cubano Jorge Perugorría – e também são cubanos todos os figurantes e coadjuvantes das cenas filmadas em Cuba. Tanto as falas de Perugorría quanto a dos coadjuvantes são pronunciadas em portunhol. Talvez para aumentar a compreensão do texto, Ruy Guerra optou pela narração em off do protagonista feita por outra pessoa. Entretanto quem narra é ele próprio, Ruy, com seu peculiar sotaque moçambicano. Assim, temos sequências de falas em que se intercalam o português de sotaque brasileiro, o portunhol (por vezes mais próximo do espanhol) e um português de sotaque moçambicano. Some-se a toda essa estranheza sonora o fato de quase todas as falas serem dubladas (onde nos damos conta de que talvez a captação dos diálogos em som direto seja a maior e mais importante convenção para o público brasileiro).

Assim, Estorvo se apresenta como um filme no qual se estranham todas as camadas de apreensão: o tempo, o espaço, a imagem e o som. Um filme que requer do espectador toda a sua atenção e talvez, mais do que isso, sua predisposição a fruir um filme que a todo momento está apresentando mais elementos de distanciamento.

Assistir ao filme hoje parece uma experiência menos instigante do que o foi há dez anos. Sem o impacto da novidade que ele apresentava, resta um enorme estranhamento e poucas brechas para a entrada do espectador. Talvez para o atual momento histórico já não faça mais tanto sentido esse personagem com uma crise identitária tão profunda. Talvez o cinema brasileiro já tenha nos oferecido novos personagens com quem se identificar e a não-identidade não nos seduza mais. Talvez se colocar em fuga já não seja mais um sentimento do nosso tempo.

“Com o sabor da insônia, a realidade adquire contornos de estranheza. (…) O tempo já não tem significado. Se Deus fosse feito de tempo, me perdoem a blasfêmia, até ele teria perdido o sentido”. O texto que abre Veneno da madrugada parece ser uma emenda que Ruy Guerra faz com seu filme anterior. Mas já nesse texto se impõe uma alteração radical: existem as flechas do tempo. O tempo pode ter perdido o significado, mas ele tem direção ou, talvez melhor, alguma organização. Isso não significa de modo algum que Ruy Guerra irá nos facilitar a captura dessas flechas de tempo. Dependerá da inteligência do espectador compreender as camadas de tempo se sobrepondo ou se sucedendo.

Assim como Estorvo, Veneno da madrugada se passa em uma sequência de situações-limite. Entretanto, ao invés de se colocarem em fuga, neste filme os personagens principais ficam e se deixam levar pela hesitação até o momento de solucionar ou escancarar a crise. E aqui, ao invés de um personagem isolado, debatendo-se contra a sociedade, nós temos um vilarejo que vive seu estorvo. É a própria comunidade que cria o estorvo no qual vive. Todos estão juntos, sentindo o mesmo cheiro fétido da vaca morta atolada, acossados pelos pasquins e pela política suja.

A fotografia não é o aspecto que mais chama a atenção logo no início do filme, mas os sotaques, marca importante também de Estorvo. Desta vez, entretanto, a utilização desse recurso de mistura linguística se mostrou melhor sucedida do que no filme anterior. A mistura está mais bem urdida, pois mesmo os personagens que falam português se apropriam de palavras em espanhol, enquanto os falantes do portunhol, por sua vez, variam em diversos graus entre o português e o espanhol. Assim sentimos uma grande permeabilidade linguística, que colabora para a criação da atmosfera desse lugarejo – um lugar qualquer, no meio da floresta, no meio de uma América Latina marcada pela herança do colonialismo ibérico. Um lugar fronteiriço e isolado, de onde se vislumbra o mundo ao redor e de onde mal se consegue enxergar um futuro incerto.

Ao longo dos primeiros minutos do filme, cada vez mais, a fotografia de Walter Carvalho vai chamando a atenção do espectador. Percebemos que o aspecto escuro e ambíguo não se referia apenas à noite na qual começa o filme, mas à atmosfera do vilarejo. O mais significativo e ousado na imagem deste filme é a ausência total de branco, especialmente de luz branca. Os dias são iluminados por uma forte luz amarelada – como se as carregadas nuvens de chuva não deixassem passar qualquer raio de sol e que toda a luz viesse apenas do calor da floresta tropical. E, da mesma forma, as noites são amarelas, pelas luzes dos lampiões.

Uma chuva incessante e uma luz sempre igual, amarela e escura. A sensação de desespero é absoluta. Todos os dias são iguais e mal se consegue distinguir o dia da noite. Os próprios acontecimentos não esperam o momento adequado para acontecer. As pessoas entram nas casas dos outros sem pedir licença, a qualquer hora, acordando-os em plena madrugada, ou interrompendo o banho, ou durante o ato sexual.

Um estorvo pessoal pode até ser causado pela relação do Eu com a sociedade, mas não é isso que Ruy Guerra coloca em Estorvo. O estorvo de “Eu” é algo pessoal, de origem psicológica, é uma impossibilidade sua de se relacionar com o mundo. O estorvo dos habitantes do povoado de Veneno da madrugada é a luta de todos pela sobrevivência – é a própria sociedade agonizando. Assim, Veneno da madrugada é mais eficaz em transmitir a sensação de angústia para o espectador atual, por ter colocado em questão, aí sim, a sociedade – a adesão ao filme não depende da identificação exclusiva de um único personagem. Entretanto, com uma trama muito intrincada – só se consegue compreender com dificuldade tudo o que se passa e as soluções são todas distópicas -, ficamos atolados em um grande pessimismo, como a vaca que empesteia o povoado.

A questão que resta, afinal, é o sentido de realizar este filme em pleno século XXI. Embora não existam marcas temporais muito significativas, está claro que o filme se passa em algum momento do século XX, em um período de guerrilhas entrincheiradas nas montanhas. Guerrilhas essas que são mencionadas, mas que nunca aparecem, tampouco são aludidas como a esperança da salvação. Dos três finais que o filme nos apresenta, nenhum é um happy ending. E, no entanto, a América Latina chegou até aqui – feliz ou infelizmente. Quais seriam as flechas do tempo que estariam guiando o tempo presente? Certamente, a flecha da corrupção nos persegue (e talvez até nos guie), mas saímos do lamaçal? Já teríamos conseguido superar nosso passado colonialista?

 

* Na imagem da home que ilustra este post: cena de Estorvo (2000), de Ruy Guerra

 

, , , , , , , , ,