Desde que li o ensaio sobre Edson Nery da Fonseca em piauí 72, penso em contar a esse bandeiriano essencial, pernambucano como o poeta de Pasárgada, sobre o achado que fizemos há alguns meses no arquivo de Paulo Mendes Campos, sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 2011. Trata-se de um manuscrito do poema “Ubiquidade”, de Bandeira, em papel já bem amarelecido, datado de Petrópolis, 11 de março de 1943, a mesma data que aparece no livro.
Diferentemente da versão com quatro estrofes publicada em Lira dos cinquent’anos, a que se encontra no IMS tem nove, sob o título de “Estás”, e não de “Ubiquidade”. Pela data, vê-se que ela é posterior à primeira edição do Lira, que foi lançado em 1940, originalmente com 23 poemas. Não constituiu um livro independente e sim acréscimo à primeira edição das Poesias completas. Na segunda edição desse livro, em 1944, o Lira aparece com mais 18 composições, entre as quais “Ubiquidade”, com suas quatro estrofes, como já foi dito aqui.
Muitos admiradores e estudiosos do poeta certamente gostariam de conhecer a versão original, antes dos cortes – penso eu. Quase posso apostar que Edson Nery da Fonseca seria o primeiro, talvez porque, como li em piauí, ele faz desse poema sua oração diária. Escreve Carol Pires, autora do texto, que quando o relógio da Basílica de São Bento, em Olinda, bate seis vezes ao fim da tarde, Edson Nery pede licença, reza o Angelus e logo em seguida o “Ubiquidade”.
Não espanta que o recite de cor. Se o corpo de 1,89 de altura lhe dificulta o andar, sua lendária memória não se deixa turvar pelos 90 anos, feitos em dezembro de 2011, dedicados à biblioteconomia e à literatura. Entre os poetas de sua predileção, o conterrâneo Manuel Bandeira, de quem foi amigo – é o que se vê nas saborosas histórias que publicou em Alumbramentos e perplexidades; vivências bandeirianas.
Menos ainda espanta, como ele declara a piauí, que pensa em Deus quando recita os versos que se iniciam sempre com o verbo estar na segunda pessoa do singular: estás. Quem, como ele, diz, sem titubear, poemas longos de Bandeira como “Evocação do Recife”, não se incomodaria de encompridar (não é assim, Edson, que dizemos no Nordeste?) a reza diária com mais cinco estrofes, entre as quais esta que reproduzo a seguir:
Estás em tudo que eu disse.
Estás nas minhas saudades.
Estás na minha velhice
E estás em outras idades.
Autor da seleção e do posfácio da antologia Poemas religiosos e alguns libertinos, publicada pela Cosac Naify em 2007, Nery coloca “Ubiquidade” em primeiríssimo lugar: é o poema de abertura do livro. Sabe-se agora o porquê da preferência.
A dedicatória a Paulo Mendes que Bandeira escreveu no manuscrito de “Estás” é datada de 30 de outubro de 1945, o que significa que Paulo não perdeu tempo: chegou ao Rio, vindo de Belo Horizonte, em agosto desse mesmo ano, e três meses depois já estava em contato com o reino de Pasárgada. A diferença de idade não existia, nem podia existir entre dois poetas de alta envergadura. Pouco importava que o pernambucano já fosse um cinquentão. Ele mesmo dizia que todo sujeito inteligente acabava gostando dele, e inteligência e talento não faltavam ao mineiro de 23 anos de idade naquele ano de 1945.
As conversas entre os dois deixaram pelo menos um resultado não só concreto mas precioso: a publicação da autobiografia literária de Bandeira, o Itinerário de Pasárgada, livro que não devia sair da bolsa de todo estudante de Letras. Em parte, Paulo Mendes Campos é responsável por essa obra-prima da memorialística brasileira, escrita em prosa suave, aquela prosa bandeiriana rica que jamais ostenta. É só ler o que escreve o autor no segundo capítulo: “Confesso que já me vou sentindo bastante arrependido de ter começado estas memórias. Fi-lo a instâncias de Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos”.
Mas voltemos a Olinda:
Edson querido, primeiramente quero explicar que, em respeito à lei do direito autoral, só posso te mandar uma estrofe do “Estás”. Mas rezar baixinho, só pra Deus, a gente pode. Eu também já converti poemas de Bandeira em oração. Já rezei muito, não o seu ?Ubiquidade’, mas o soneto ?Renúncia’, do nosso querido poeta. E não às seis da tarde, como você, mas mais tarde, perto da meia-noite, oração de antes de dormir. Ao primeiro verso, ?Chora de manso…’, eu já começava a me fortalecer, e, ao dizer o último, me sobrevinha um sono tão generoso, tão bom… Dormia integralmente pacificada. Mas lhe confesso uma coisa: na minha reza, eu omitia o último terceto, aquele que diz:
Encerra em ti tua tristeza inteira.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira.
É que os dois primeiros quartetos e o primeiro terceto me enchiam de coragem e paz. Bastavam. Com eles eu aceitava a minha tristeza. Mas, pedir que ela ficasse para sempre? Não, eu não a queria doce e constante na minha vida.
Mas Bandeira não terá se ofendido, não, tenho certeza. Rezado ou não rezado, o terceto é lindo e começou por confortar o próprio poeta, que, ao compô-lo, encontrou uma forma de aceitar a tuberculose com que conviveria tantos anos muitíssimo bem vividos.
* Elvia Bezerra é coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles.