A batuta de Marin, por Alex Ross

serrote

18.02.11

O texto abaixo foi publicado na revista The New Yorker, na edição de 7/1/2008. Na ocasião, a americana Marin Alsop assumia o cargo de diretora musical da Orquestra Sinfônica de Baltimore, vindo a ser a primeira mulher a liderar uma grande orquestra norte-americana, e as expectativas sobre seu trabalho eram as mais positivas. Nesta semana, Marin assumiu no Brasil o posto de regente titular da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, até então sob a batuta do francês Yan Pascal Tortelier.

 

Maestra Marin Alsop rege a Orquestra Sinfônica de Baltimore
Por Alex Ross
Tradução de Alexandre Morales

“Não deixe a história te passar em branco!”, proclama um banner pendurado na frente da Sala Sinfônica Joseph Meyerhoff, em Baltimore. A história em questão diz respeito a Marin Alsop, que em setembro de 2007 assumiu o cargo de diretora musical da Orquestra Sinfônica de Baltimore, tornando-se assim a primeira mulher a liderar uma grande orquestra norte-americana. Ou assim dizem alguns. Uma recente matéria de primeira página do jornal The Buffalo News declarou que a Orquestra Filarmônica de Buffalo – um conjunto experiente, habilidoso e não exatamente menor – fez essa história já em 1998, quando contratou a regente JoAnn Falletta. A Liga das Orquestras Americanas, solicitada a dirimir a disputa, observou que as pessoas do meio orquestral empregam a palavra “grande” para indicar um conjunto musical que toca o ano inteiro: o de Baltimore toca, o de Buffalo não. Qualquer que seja o desenlace dessa controvérsia, regentes mulheres ainda são perturbadoramente raras. O problema não é que a misoginia corra solta no mundo musical: é que a esfera da música clássica é temperamentalmente resistente à novidade, seja na forma de regentes mulheres, de regentes americanos, de música contemporânea, de trajes de concerto pós-1900 ou de combinações de cores em salas de concerto que não sejam o bege corporativo.

Assim como diversas outras orquestras americanas sediadas em centros urbanos conturbados, a Sinfônica de Baltimore tem passado por dificuldades nos anos recentes, com suas finanças periodicamente em crise e plateias reduzindo-se de um modo alarmante. Seu diretor musical anterior, Yuri Temirkanov, era um maestro nos moldes tradicionais, um ardoroso intérprete do repertório familiar. Alsop, uma nova-iorquina de 51 anos, é bastante diferente, e não só por causa de seu sexo. É uma ferrenha defensora da música contemporânea e tem dito que queria ter sido uma compositora – que reger, para ela, é uma maneira vicária de se embrenhar no processo criativo. Todos os regentes não-compositores provavelmente sentem a mesma coisa, mas a maioria acha conveniente restringir suas atenções aos confiavelmente falecidos. Compositores mortos não levantam a voz e não pedem mais feltro no bumbo; não apoquentam músicos relutantes em aprender uma partitura novinha em folha que possivelmente jamais vão tocar outra vez; e geralmente não fazem com que pessoas da plateia corram para as portas de saída. Em cargos de regência anteriores, nas orquestras sinfônicas de Colorado e de Bournemouth, Alsop mostrou aptidão para atrair tanto músicos como plateias para apreciar músicas das quais achavam que não iriam gostar. Em alguma medida, ela se tornou uma estrela fazendo dos compositores as estrelas. Está a caminho de realizar a mesma proeza em Baltimore – ou assim pareceu em dois concertos apresentados entre setembro e novembro de 2007.

A temporada inaugural de Alsop foi surpreendentemente ambiciosa. Nela figuraram 11 compositores vivos – John Adams, Tan Dun, HK Gruber, Aaron Jay Kernis, Mark O’Connor, Steven Mackey, Christopher Rouse, James MacMillan, John Corigliano, Thomas Adès e Joan Tower -, que foram representados por algo mais significativo do que a hors d’oeuvre auditiva de sete ou oito minutos que costuma passar por programação de música contemporânea. Cinco deles ocuparam toda a primeira metade de um programa, com uma sinfonia de Beethoven após o intervalo. Eventos de diálogo com compositores propiciam aos artistas convidados expor suas visões. Para estimular iniciantes, a Orquestra reduziu os preços da assinatura da série regular para 25 dólares por noite, compensando a diferença financeira com um subsídio de um milhão de dólares. Aos estudantes é oferecido um pacote de cinco concertos por 25 dólares. Sejam quais forem as desculpas que os moradores de Baltimore possam dar para deixar de ir aos concertos de música clássica, preços de ingresso elevados não podem ser uma delas.

A meio caminho da primeira temporada, a Orquestra comunicou um aumento de público. Uma salutar multidão compareceu a um concerto que emparelhava duas obras de Kernis – Newly drawn sky e Lament and prayer [Céu recém-desenhado e Lamento e prece] – com a Sinfonia Pastoral de Beethoven. John Adams atraiu um público considerável para as apresentações de suas peças; já as de Tan Dun venderam mal. Alsop reconhece que ainda é um maior apelo de público do que os compositores pelos quais tem tão patente afeição. Ela está diante de um contumaz dilema: por um lado, precisa convencer os tradicionais frequentadores de concertos do valor de Adam e Adès; por outro, precisa convencer os mais jovens da relevância de Beethoven. “Não creio que eu esteja sendo ingênua, mas nem tento pensar nisso”, disse-me ela quando dei uma passada em seu camarim após seu debate público com Kernis. “Apenas tento tratar todas as músicas da mesma maneira.”

Pupila de Leonard Bernstein, Alsop adota uma postura intensamente física ao reger, fazendo-o tanto com o tronco quanto com os antebraços e mãos. De índole espontânea, ela frequentemente altera andamentos e detalhes de fraseados de uma apresentação para outra. Músicos podem achar frustrante esse tipo de imprevisibilidade. Durante um ensaio, um deles tentou convencê-la a se comprometer com um andamento estável de um ritardando na Pastoral, com o que ela disse de gozação: “Tenho um problema com compromissos”. (Quando a nomeação de Alsop foi anunciada, em 2005, boa parte da orquestra se insurgiu em protesto, dizendo à imprensa que ela era cheia de lábia e imprecisa. Depois veio à baila que essa rebelião tinha mais a ver com tensões de ordem administrativa do que com a própria Alsop. Um novo diretor executivo, Paul Meecham, estabeleceu um clima mais amistoso.)

A Pastoral recebeu uma execução calorosamente expressiva, vigorosa, embora um ligeiro embaralhamento teimasse em se intrometer no conjunto. Mais impressionante foi uma versão da Quinta sinfonia de Mahler que ouvi já em setembro: demonstrou não só a exuberância da regente, mas também seu domínio de estrutura. A orquestra, um grupo persistentemente depreciado, se mostra em ótima forma; como antes, dá mais valor a texturas polidas do que a contundência virtuosística.

Alsop defendeu a música de Kernis por anos, notadamente em sua posição como diretora do Festival de Música Contemporânea de Cabrillo, realizado em Santa Cruz, no estado da Califórnia. O compositor fez seu nome nos anos 1980 como líder do Neo-Romantismo – uma pródiga revolta musical contra as disciplinadas linguagens neoclássicas e modernistas que dominavam a música americana desde muito tempo. No início dos anos 1990, a obra de Kernis se tornou intimidadoramente tensa, à medida que ele passou a abordar temas relativos à guerra e ao terror. Ultimamente ele tem assumido um tom lírico e mais expansivo, que lhe cai maravilhosamente bem.

Newly drawn sky, de 2005, retrata um dia que o compositor passou na praia com seus filhos pequenos, observando-os em seu primeiro encontro com o mar. Harmonias graves, ressoantes e amplamente tonais evocam a amplidão do oceano; padrões agitados nos registros mais altos sugerem um céu em rápida transformação. Alsop trouxe à tona a sequência mais longa conectando os episódios, de modo que a música se desdobrou em um único movimento abrangente.

Lament and prayer, para violino-solo, cordas, percussão e um oboé nos bastidores, teve a sua estreia em 1995, no término do período “ruínas e trevas” de Kernis. A peça celebra o quinquagésimo aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial. Na primeira parte, o solista luta para ser ouvido por sobre uma textura catastrófica de glissandos turbulentos, ritmos conflitantes e unissonâncias furiosas. Em seguida ocorre uma ruptura extática, quando o violino entoa uma plangente melodia tonal à maneira de um cantor de sinagoga à frente da congregação, o oboé respondendo tal qual uma voz proveniente do outro lado. Na coda, o violino sobe até o seu mais alto registro e chega a um repouso complexo, não-sentimental; o naipe de cordas para onde ele começa, na nota lá, com uma obcecante reminiscência da abertura da Primeira sinfonia de Mahler. Em Baltimore, o solista foi o formidável jovem virtuosístico Timothy Fain, que ondulava como num balé enquanto perquiria a partitura. (Não muito tempo depois, Fain tocou numa execução condensada de Einstein on the beach [Einstein na praia], de Philip Glass, no Carnegie Hall. Seu pendor romântico quase quebrou o encanto do cool “estado estável” de Glass.) Kernis recebeu uma ardente ovação. Beethoven foi quase um apêndice.

Listas de orquestras americanas com pensamento progressista – a Filarmônica de Los Angeles e a Sinfônica de San Francisco as encabeçam, com os conjuntos de Baltimore, Atlanta, Minneapolis, St. Louis, Boston e Chicago não muito atrás – raramente incluem a Filarmônica de Nova York. Ao longo dos anos, a orquestra mais antiga dos Estados Unidos tem personificado a escola de programação orquestral “atenha-se aos clássicos, nada de surpresas”. Não muito tempo atrás, o crítico Peter G. Davis aclamou-a como “a grande orquestra mais chata do mundo”. Aparentemente determinada a comprovar o argumento, a Filarmônica de Nova York deu o pontapé inicial da temporada atual [2007-08] com um festival intitulado A experiência Tchaikovsky; no ano passado [2007], o holofote recaiu em Brahms. Lorin Maazel, agora em sua sexta temporada como diretor musical, faz a orquestra tocar diabolicamente bem, mas não deixou nenhuma marca discernível na vida cultural da cidade. Suas interpretações continuam a ser, para mim e para outros, um livro fechado. Sua Patética, no início da temporada, foi tecnicamente perfeita mas emocionalmente vaga. Ouvi Tchaikovsky, mas não necessariamente o experienciei.

Ainda assim, há sinais de vida na Filarmônica. Obras contemporâneas e do século XX estão se propagando. Três notáveis regentes mais jovens estrearam nesta temporada: Philippe Jordan se juntou ao pianista Pierre-Laurent Aimard numa substanciosa interpretação do Terceiro concerto para piano de Beethoven; Gustavo Dudamel liberou sua energia visceral na Quinta sinfonia de Prokofiev; e Andrey Boreyko regeu uma versão furiosamente disciplinada da Quarta de Shostakovich. Essa última execução ocorreu em conjunção com uma nova série chamada Por dentro da música, na qual uma grande obra é primeiramente discutida em detalhe e depois tocada na íntegra. No caso de Shostakovich, o analista foi o melífluo compositor e erudito Gerard McBurney, que, com a ajuda de fotos, de sequências filmadas e de leituras dramáticas feitas pelo ator F. Murray Abraham, transformou a mais sublimemente caótica obra de Shostakovich numa trilha sonora para um documentário sobre a vida sob Stálin. No fim das contas, não se informou muita coisa sobre a música, mas foi uma apresentação fascinante, beneficiada por um toque de showbiz de alta categoria que estava faltando na orquestra desde os tempos de Leonard Bernstein. Mais mudanças estão a caminho: um compositor-residente celebrado, uma série de música contemporânea e em 2009 um novo maestro titular, o musicalmente abalizado e intelectualmente questionador Alan Gilbert. É possível que os críticos não tenham a velha Filarmônica para malhar por muito mais tempo.

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