O mundo que se adapte

Correspondência

18.02.11

Prezado André,

Em É isto um homem, Primo Levi…

Brincadeira. Companheiro, vou ter que responder tua cartinha meio rápido porque estou na Praia da Pinheira e não trouxe computador nem nada. A lan house fica meio fora de mão e estou perdendo um churrasco neste exato momento, mas não seria honrado te deixar sem resposta.

Em primeiro lugar, obrigado pela hospitalidade mais uma vez. Peço desculpas por não ter tocado Rudimentari Peni na festa (esqueci de gravar no CD, essa é que é a verdade) e ter feito piadas incessantes no domingo enquanto vocês assistiam Era uma vez na América. Também adoro o filme, mas aquela vitória suprema durante a tarde no Super Mario Galaxy 2 me deixou com o espírito galhofeiro. Se vier mesmo a Porto Alegre em março, traga o jogo. Todavia, um alerta: não há nenhuma garçonete nem remotamente parecida com a atriz Mila Jojovich no Parangolé. Não sei do que tu tá falando.

Como estou meio duro e cheio de trabalho, achei que não conseguiria pisar na praia esse verão, mas minha amigona Gaby me convidou pra passar uns dias com ela e a família numa casa que alugaram aqui na Pinheira e ontem fui obrigado e levantar da frente do computador balbuciando “o mundo que se adapte”, enfiar umas roupas na mochila e partir.

Está fazendo um dia lindo aqui. Parece que choveu sem parar na última semana, mas assim que chegamos o céu ficou estrelado e hoje cedo fui direto pra praia e nadei uns 2,5km na Praia de Cima. Todos os meus problemas se resolveram. Talvez tu saiba do que estou falando, sei que tu já nadou uma travessia com teu pai. Água na temperatura perfeita, azul, espelhando os morros. É só nadar que o meu dia está ganho. Se nadar no mar, o dia se torna inesquecível. É simples assim.

Depois sentei na areia e pedi uma caipirinha no Bar do Passarinho, onde a guria que prepara os drinques refrescantes sabe que gosto da minha com pouco açúcar. Tomado de euforia, resolvi fazer a trilha pelos morros até a Praia da Guarda, coisa de uma hora andando firme, passando por pedregulhos, vales, penhascos com vista pro oceano. Passei por uma comitiva de argentinas severamente castigadas pelo sol, por um cachorro todo recoberto de cicatrizes de sarna que estava tentando tirar algum pequeno animal de dentro de um buraco, por uma hippie tomando sol de topless entre as vacas (juro), por um abutre planando imóvel a três metros do chão no topo de um morro e por um pai ajudando as duas filhas pequenas a vencer a trilha. Estava tudo embarrado por causa das chuvas recentes. No meio do caminho, ficou nublado, e ao chegar na prainha do canto da Guarda eu comi quatro pasteis com uma lata de ceva no Bar do Ivori e fiquei conversando com a mulher dele, que basicamente disse que o movimento anda fraco e que uma tal de nova cerveja Antarctica chamada Sub Zero ou algo assim tem saído muito. Depois peguei uns jacarés e voltei caminhando pelo morro de novo.

Desculpa, não sei mais o que dizer. Estar aqui me faz esquecer quase todo o resto. Vim durante muitos anos pra cá, a gente – eu, amigos, namoradas – costumava acampar no camping do Nico e eu vivi muita coisa nessa prainha. Passei carnavais, Natais e viradas de ano aqui. Tive, nesse lugar, alucinações depois de comer mexilhões tóxicos que inventei de arrancar da pedra a faca (Dica: se um dia for colher seus próprios mexilhões, faça-o na maré baixa), tomei meu primeiro (e infelizmente não último) gole de conhaque de alcatrão e me convenci mais ainda de que amava pessoas que eu já suspeitava que amava. Quer dizer, o resto do mundo fica parecendo meio irrelevante. Me ponha a par do chamado “mundo” na volta. Saiu algum livro legal? Já deram um Mubarakaço no Hugo Chavez? Algum trailer novo do filme do Malick?

Gostei da anedota do Proust e seu editor. Acho que todo autor tem vontade de acrescentar coisas no livro a cada releitura. As histórias não param de ser contadas dentro da cabeça, nunca, desde que se continue pensando nelas. O Mãos de Cavalo é uma historinha que comecei a contar na cabeça desde os nove ou dez anos de idade. Já declarei isso por aí em bate-papos ou em alguma entrevista e não é mentira. Eu lembro claramente do momento em que imaginei pela primeira vez certos detalhes da história e dos personagens, e alguns deles aconteceram num apartamento em que moramos em Perdizes que eu tinha essa idade, não mais que dez anos. Ficava na sacada olhando os pátios e piscinas dos prédios vizinhos e passando filminhos fragmentados na cabeça. Alguns desses filminhos estão no romance que escrevi quinze anos depois. Nunca para, e pôr um ponto final e imprimir o livro pode ser a única maneira de parar de imaginar uma história.

Na Cachalote foi esquisito, porque eram duas pessoas imaginando a história, eu e o Rafa, e às vezes eu ia ver os rascunhos ou páginas desenhadas e pensava que Ei! Alguém andou imaginando isso aqui no meu lugar, que porra é essa? Mas aí eu via que era o Rafa e que tinha ficado bom, melhor que antes, e eu tinha uma nova idéia a partir da dele, que acabava sendo acrescentada ao roteiro etc.

Mas no geral eu não sou de acrescentar coisas. Entrego meus livros meio inchados e tenho que cortar. A Marta sabe bem disso. No romance que estou tentando escrever agora, é como se eu já tivesse passado antes de começar o livro e agora, no momento da escrita, por esse processo de acréscimos feito pelo Proust na hora da edição final. A vantagem é que pode facilitar a vida do editor e do diagramador – é só cortar. A desvantagem é que o editor não está envolvido enquanto a coisa acontece, e eu posso estar escrevendo um monstro prolixo recheado de tumores mamutais que um editor teria detectado a tempo no processo de edição.

Merda, fiquei com vontade de escrever agora.

Abraço,

D. Galera

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