Cuidadosamente, para não entornar

Cinema

21.10.15

Num palco improvisado sobre uma carroça, dois atores ambulantes cantam para um pequeno público, que assiste à representação entre risos e comentários divertidos. Subitamente tudo é interrompido por gritos de dor misturados às vozes de um coro. Os rostos dos atores, até então alegres e descontraídos, assumem uma expressão de dor e espanto, enquanto uma procissão se aproxima da carroça, homens, mulheres e crianças vestidos de negro, com capuzes sobre a cabeça. Eles se martirizam com chicotes, gritam com o rosto voltado para o céu, cantam e se atiram de joelhos ao chão para pedir perdão a Deus. Um monge carrega uma enorme cruz de madeira, traz um turíbulo e espalha a fumaça de incenso. Os atores, e também o pequeno público diante da carroça (no meio deles o cavaleiro Antonius Block e seu escudeiro Jöns), permanecem imóveis e calados, como que agredidos pelo inesperado aparecimento da procissão.

Olhar severo, a boca contraída entre um sorriso de ironia e um quase choro de raiva, o monge ora se dirige aos personagens em cena, ora ao espectador. Uns e outros, para ele, gado a caminho do matadouro. “Sabem que esta pode ser a última hora de suas vidas? A morte está ao lado de vocês”. A imagem do rosto do monge é por vezes interrompida para vermos os olhares assustados das pessoas que o escutam. “Vocês sabem, seus tolos e insensatos, que todos iremos morrer hoje, ou amanhã, ou no dia seguinte porque fomos condenados? Ouviram o que eu disse? Ouviram a palavra? Vocês foram todos condenados, condenados!”

Uma breve pausa. O monge olha para o céu e continua sua anti-oração sofrida e irritada contra a falta de sentido da vida: “Deus, tenha piedade de nós em nossa humilhação. Não volte a Sua face para nós com repugnância e desprezo. Seja piedoso conosco, pelo amor de Seu filho Jesus Cristo.”

“É um danado de um discurso extravagante sobre o dia do Juízo Final. Este é o alimento do cérebro das gentes modernas? Eles esperam que nós tomemos isto a sério?” – comenta o escudeiro Jöns tão longo o monge termina o sermão ameaçador com um sinal da cruz e solta a voz num novo canto religioso para comandar os outros monges e os peregrinos a seguir a procissão. Jöns comenta para o cavaleiro Block, mas este permanece em silêncio enquanto o escudeiro continua a protestar, a dizer que seu estômago é o seu mundo, sua cabeça a sua eternidade e suas mãos dois magníficos sóis. “Minhas pernas são dois pêndulos do tempo e meus pés sujos dois esplêndidos pontos de partida para minha filosofia”.

Os artistas interrompidos pela procissão são um modo de reencenar a imagem que abre o filme, o encontro do cavaleiro Block com a morte:

 

Quem é você?
A morte.
Você veio para me levar?
Tenho caminhado a seu lado por muito tempo. Está preparado?
Meu corpo está tremendo, mas não estou preparado.
Não se sinta envergonhado.

 

A Morte propõe um jogo de xadrez em que joga (Muito apropriado, não acha? – ela pergunta), joga com as pretas. Deus como uma espécie de juiz que impõe em silêncio um jogo de xadrez em que o jogador com as brancas consegue, quando muito, retardar a derrota. De acordo com as regras, quem joga com as peças brancas perde.

Assim como o encontro dos artistas ambulantes com a procissão reitera a cena inicial de O sétimo selo (Det sjunde inseglet, 1956), o filme como um todo conta de novo o que um personagem de Juventude (Sommarlek, 1951) define como “uma dor de dente na alma”. Ingmar Bergman (1918-2007) tinha o hábito de rever com regularidade seus antigos filmes (foram 67, entre 1946 e 2007) e encontrar numa cena, num personagem ou mesmo no gesto de um ator um ponto de partida para uma nova obra – Anders Ek, que faz aqui o papel do monge, faz também o monge em Gritos e sussurros (Viskningar och rop, 1972), com idêntico olhar severo e a boca contraída entre um sorriso de ironia e um quase choro de raiva

No jogo de xadrez com a Morte,  entre o silêncio de Deus e a presença do diabo,  os personagens de Ingmar Bergman reafirmam de filme para filme a falta de sentido da vida, “uma irrealidade insensata, que se transforma ao final na realidade sólida e palpável de um cadáver”, como diz um deles aqui, “pois na escuridão em que estamos não existe ninguém para ouvir nossos gritos e se sensibilizar com nossos sofrimentos”, acrescenta um personagem de um outro filme. “De nosso medo fizemos uma imagem, e a esta imagem chamamos Deus”, o Pai supremo que não cessa de punir seus filhos”, diz o cavaleiro Antonius Block. “Nossa vida era muito boa, o Senhor decidiu então nos punir com a peste”.

Qual o verdadeiro objetivo destas repetidas confissões de dor e de humilhação? De onde surge, afinal, a força e o interesse em torno desta conversa amarga que se repete de filme para filme?

“Filmes são como pessoas. Gostamos. Não gostamos. Ficamos indiferentes”, anotou Bergman na introdução do livro com o roteiro de A hora do amor (Beröringen, 1971). O que importa, talvez, nesta expressão que se apresenta sempre a mesma, é sua depuração. O de sempre reaparece como novo. Mais efetiva se torna a pintura da dor e da humilhação, mais forte por trás dela a reafirmação de que o homem determina o seu próprio sentido. A afirmação é feita pela negação. Maior o desespero, maior a intensidade do pequeno instante de felicidade que nada pode quebrar ou impedir. Por mais insensata que seja a existência, um só instante em que a vida se libera sem impedimentos supera todo o sofrimento.

Em Gritos e sussurros, o instante é aquele anotado por Agnes em seu diário, uma tarde de verão com as irmãs no jardim: “Queria parar o tempo e pensava: isto, em todo caso, é a felicidade. Não posso desejar nada melhor. Agora, durante alguns minutos, poderei viver a plenitude. E sinto uma grande gratidão pela minha vida, que me dá tanto”.

Em O silêncio (Tystnaden, 1963) é o encontro com a música de Bach. Aqui, em O sétimo selo, é a luz do entardecer sobre o rosto dos amigos do cavaleiro Antonius Block, os atores Jof e Mia, o pequeno Micael e o escudeiro Jöns. Viver é buscar este instante, breve, mas guardado na memória como uma cena de filme que se projeta de novo e de novo.

“Eu me lembrarei para sempre deste momento”, diz Antonius aos amigos. “O silêncio, o crepúsculo, os morangos e o leite. A luz do entardecer sobre as faces. Micael dormindo, a música de Jof. Vou guardar as nossas conversas. Vou carregar esta memória em minhas mãos, tão cuidadosamente como um prato cheio até as bordas de leite fresco. Cuidadosamente, para não entornar. E este será um signo adequado e suficiente para mim”.

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