O filósofo Henri Bergson

O filósofo Henri Bergson

Para compreender o riso

Filosofia

05.12.16

Em um pequeno livro chamado Le rire, ou O riso, o filósofo Henri Bergson (1859-1941) observa que não existe humor fora daquilo que é propriamente humano. Uma paisagem, diz ele, não pode ser cômica, mas apenas “bela, sublime, insignificante ou feia”. Os animais só nos parecem engraçados quando atribuímos a eles algum tipo de atitude ou característica humana. Mais do que a única espécie que ri, diz Bergson, somos a única espécie que faz rir.

Três acontecimentos recentes me fizeram retornar ao texto de Bergson.

Primeiro. Em uma sinopse de O tribunal da quinta-feira, o novo romance do escritor Michel Laub, o jornalista Almir de Freitas menciona as piadas que o narrador do livro, José Victor, compartilha com o melhor amigo, Walter. Os dois personagens, afirma Almir, abusam de uma espécie de humor “não muito elegante” que “dois caras” podem empregar na intimidade. O jornalista não dá a entender que as mulheres estão proibidas de adotar o tom de José Victor e Walter, mas a construção da frase, que atribui a primazia do humor “não muito elegante” ao masculino, é significativa. Não se trata de um registro que duas ou mais pessoas tendem a adotar quando se tornam amigas, mas que “dois caras” tendem a adotar.

Sugerir que o humor é território onde o masculino transita com mais desenvoltura reforça a associação entre as noções (ambas questionáveis, mas especialmente nocivas quando sobrepostas) de pureza e feminino. A se crer na lenda da pureza, as mulheres não têm e não devem ter intimidade com o escatológico, com o mau gosto, com o grosseiro. A elas restam os bons modos e a docilidade, que costumam favorecer a submissão. Já os homens, donos e senhores da linguagem em sua totalidade — detentores do monopólio do baixo calão, do escracho tosco, da babaquice cúmplice, da ofensa afetiva, da piadinha sebosa —, podem articular o que quiserem, quando quiserem e como quiserem. Mais de cem anos depois da publicação do livro de Bergson (1900), descobrimos que o humor, pelo menos o humor em suas variantes menos domesticadas, não é propriamente humano: ele é masculino. Mulheres que somos, ainda rimos com o leque cobrindo a parte inferior do rosto empoado, e rimos baixinho, hihihi, corando ao ouvir a anedota requintada que algum cavalheiro nos sussurrou ao ouvido.

Segundo. Outro jornalista, Ricardo Noblat, tenta justificar a perda de dignidade com um aceno forçado para o bom humor. No Twitter, Noblat sugere que não se leva demasiado a sério. Não soou como uma confissão meio tardia de alguém que adotou a leveza como Weltanschauung, mas antes como um pedido desesperado de clemência. Eu não levo a sério o que digo, de modo que vocês também não deveriam levar. É um desrespeito ao humor — em todas as suas vertentes, e com todas as suas possibilidades de subversão, de insubordinação, de rebelião — utilizá-lo como uma espécie de declaração de incapacidade mental, mais ou menos como um atestado de que alguém é inimputável. No momento em que um sujeito emprega a fórmula utilizada por Noblat para se esquivar das consequências de uma postura — pública — ou de uma série de declarações — também públicas — bizarras, criminosas ou asquerosas, tem de se preparar para amargar a mais completa irrelevância.

Há várias formas de compreender ou justificar a necessidade, em geral legítima, de não se levar a sério. Uma delas, minha favorita, tem a ver com rejeitar a ilusão de controle. É um outro registro de humor, nem sofisticado, nem de gosto duvidoso, mas antes próprio de uma postura ou de uma forma de encarar a vida. É um processo complexo e contínuo, e por vezes inútil. Todo o éthos me parece muito próximo da comicidade tal como esta se sobressai nos escritos de Samuel Beckett, ainda que alguns argumentem que Beckett, sombrio, se afastou uns bons quilômetros de qualquer tipo de humor. (Eu poderia citar Kafka ou Bellow ou Roth, mas cometeria uma injustiça. Há uma diferença sutil, mas importante, entre os três e Beckett.)

O processo, enfim, consiste em entender que as decepções são inevitáveis, que certos fracassos já vêm embutidos nas tentativas, que as rejeições são mais do que esperadas, que erros são cometidos, que passos em falso são dados — e que vez ou outra, com ou sem razão, vamos esbarrar na falta de sentido. É uma chave, cheia de platitudes testadas e comprovadas, que ajuda a lidar com a frustração. É possível ligá-la e desligá-la, ainda que ela ocasionalmente crie vida própria. Nesse sentido, alguém que não se leva a sério não abdica da tentativa de alcançar o acerto ou a correção, mas tenta, e pode fracassar nisso também, aceitar o fracasso.

Tomar distância da ideia de perfeição e da sisudez, sem com isso esperar uma autorização para fazer e dizer todo tipo de bobagens, me parece indissociável da ideia de maturidade. Com a chegada não só dos primeiros fracassos, mas também das centenas de responsabilidades, já não se pode usar o humor como escudo, como carta de saída livre da prisão, como desculpa. O humor de quem não se leva a sério é isso: o riso desiludido compartilhado com o amigo enquanto se confessa a mais nova derrapada, e nada mais. Uma criança ou um adolescente não têm condições de compreender, ou não plenamente, o significado de não se levar a sério. O não se levar a sério de um adolescente tem mais a ver com a ideia de inconsequência do que com a consciência de que a vida adulta não é, e não pode ser, uma trajetória ascendente.

(Por essas e outras é uma violência submeter as mulheres aos bons modos, à cordialidade, à docilidade permanentes. Ao mesmo tempo em que lhes diz que elas não são seres humanos completos, isso as força a se levar a sério demais, no pior sentido da palavra.)

O último dos três exemplos é de longe o mais desolador. Acompanhamos, estarrecidos, uma tragédia que fez de 2016 um ano ainda mais terrível. No geral, nossa comoção e nosso choque coletivos se traduziram em gestos ou palavras de generosidade, de espírito esportivo, de reconhecimento, de afeto, de compaixão. Ainda assim, houve quem fizesse piada com a enormidade daquela dor, numa demonstração grotesca, caso alguém ainda duvidasse, de que há situações em que o humor não cabe, não pode caber, não tem como caber, não deve caber. Todo e qualquer humor é facilmente esmagado por uma tristeza tão devastadora. Qualquer humor, ou tentativa de humor, se transformou em irresponsabilidade e crueldade, uma nota dissonante numa reação que, no geral, se provou afinada. E bonita.

Segundo Bergson, todo riso nasce da insensibilidade. “Não há maior inimigo do riso do que a emoção”, escreveu. Assim, “entre almas sempre sensíveis”, para as quais “todo acontecimento produz uma ressonância sentimental, não se conheceria nem se compreenderia o riso”. Quem tenta sentir o que o outro sente — quem procura, enfim, exercitar a empatia — verá que “as coisas mais frívolas se convertem em graves e que tudo se reveste de matizes severos”. Por outro lado, quem assiste a vida como um “espectador indiferente” vê muitos dramas num registro de comédia. O cômico, para produzir seu efeito, exigiria uma espécie de suspensão momentânea do sentimento. Bergson faz uma separação equivocada entre sentimento e inteligência, mas seu argumento de que no riso há certa recusa em enxergar a emoção está correto.

Em O tribunal da quinta-feira, Walter, homossexual e soropositivo, usa a linguagem irônica e a autoparódia como um escudo, o que nasceu da necessidade de driblar o preconceito a que sempre esteve sujeito. (E esse rir-de-si-mesmo é uma consequência inevitável do não-se-levar-tão-a-sério.) Para não se deixar arrastar pela autopiedade, Walter encontrou o registro cômico que passou a compartilhar com José Victor. Quando a ex-mulher do narrador encontra os e-mails trocados entre os dois, não consegue, como parece natural, entender o contexto em que foram escritos. O humor é de gosto duvidoso, mas tem uma função específica. Uma função que apenas José Victor e Walter conhecem. Uma função aceita e compartilhada.

“Para compreender o riso é preciso reintegrá-lo a seu meio natural, que é a sociedade”, diz Bergson. Todo riso tem, para o autor, uma “função social”: “deve responder a certas exigências da vida comum” e “deve ter um significado social”. A função social também pode nascer de uma relação (um microcosmo) entre duas pessoas. É um humor negociado, ajustado, privado, que nasce por tentativa e erro e ajuda a unir quem dele se serve.

Se a função social do humor na intimidade responde às iniciativas e às necessidades de quem está inserido naquela relação, na esfera pública tudo é bem diferente. Excluir as mulheres do jogo, que não podem tomar para si a iniciativa de fazer graça e de discutir o cômico, é uma forma de tornar o humor um privilégio de alguns. Pior ainda é perturbar um coletivo de milhões com a tentativa de puxar o riso quando há emoção e há choro. O humor é humano e é social. Ele pode ser (e de fato é) o nosso cabo de segurança, mas não é escudo e, como a taça de vinho no jantar, deve ser usado com moderação.

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Traduzi os trechos de Bergson a partir de uma versão em espanhol do livro, La risa.

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