O Photoshop de Ródtchenko – Por Peter Campbell

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22.02.11

O texto abaixo trata do fotógrafo e artista gráfico Aleksandr Ródtchenko (1891-1956) – tema de exposição no Centro Cultural do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro – e é de autoria de Peter Campbell, designer gráfico e crítico de arte da London Review of Books, onde foi publicado este artigo (vol. 30, n. 8, 24/4/2008, p. 16) por ocasião de uma mostra retrospectiva em Londres, a mesma que a Pinacoteca do Estado de São Paulo, em parceria com o IMS, abriga de 19/2/11 a 1/5/11. A tradução do inglês é de Alexandre Morales. Campbell analisa a produção fotográfica do artista russo e imagina como ele trabalharia hoje com o editor de imagens Photoshop.

Ródtchenko teria adotado o Photoshop
Por Peter Campbell

Quando Aleksandr Ródtchenko começou a tirar fotos, em 1924, estava com trinta e poucos anos e já era conhecido como um pintor de abstrações austeras e como criador de colagens e fotomontagens. Produziu muitas de suas fotos mais memoráveis durante seus primeiros poucos anos com uma câmera: sua mulher, Varvara Stepanova, sorrindo com um cigarro preso entre os dentes, sua mãe segurando os óculos dobrados sob um olho e diversos retratos de Maiakóvski. (Um desses retratos deve ser anterior aos outros, já que Maiakóvski não está com a cabeça raspada. De acordo com uma anotação de sua filha, o próprio Ródtchenko deu início à onda da raspagem em 1920. Depois outros membros da LEF – Frente de Esquerda das Artes – seguiram o exemplo.)A julgar por Aleksandr Ródtchenko: Revolução na Fotografia, uma nova exposição de sua obra (em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo até 15/5/2011: clique aqui para saber), com o passar do tempo Ródtchenko fez menos imagens memoráveis de indivíduos. Em vez disso, encantou-se com a capacidade da câmera de proporcionar, literalmente, um ângulo inusitado sobre as coisas, o aspecto da fotografia que ele enfatiza num texto de 1934 no qual ele aspira a “composições que superem a imaginação dos pintores em ousadia”. Ele estava particularmente intrigado com vistas de cima para baixo e de baixo para cima. Fotografias de 1933 mostram Georgy Petrussov estendido no chão para tirar fotos de sua mulher. Ródtchenko devia estar agachado quando, em 1930, fez retratos em escorço e em close-up de crianças do Movimento dos Pioneiros soviético.

No repertório de poses inventadas ou adotadas pelos fotógrafos, cabeças vistas a partir de baixo contra o céu tendem a representar coisas como “esperança”, “empenho”, “olhar para um novo horizonte”. Fotos tiradas de cima, por outro lado, engendram padrões a partir da atividade humana e inserem indivíduos em grupos: multidões se entremeiam, bandas marcham, trabalhadores almoçam no refeitório da fábrica. Olhar acima para um prédio moderno ou uma escada de incêndio conduz o olho para um remoto ponto de fuga; mantenha a câmera voltada para um ângulo e o horizonte impassível se torna uma diagonal dinâmica.

Foto de Aleksandr Ródtchenko

Câmeras diminutas recém-disponíveis estimularam esse tipo de coisa. A Leica era tanto um equipamento quanto um símbolo – é vista na exposição junto com uma caneta e um caderno de anotações na capa da revista Zhurnalist -, e nas mãos dos fotógrafos é um emblema profissional tão significativo quanto as espingardas carregadas nos ombros por soldados marchando em outras fotografias. Uma das duas ou três imagens mais célebres de Ródtchenko é Moça com uma Leica, de 1934. A câmera do fotógrafo foi inclinada de modo que o banco no qual a moça está sentada se estendesse de um canto a outro. Um gradeamento de alguma espécie projeta uma grade de sombras em seu rosto, em seu vestido branco, no banco e na calçada à frente dela. Em fotos como essa – e em outras de arquitetura, cristais, maquinário industrial e até de ginastas, nadadores e árvores altas -, ritmo e simetria são extraídos do tema. A busca do artista gráfico por estrutura é dominante.

Fotografia de Aleksandr Ródtchenko

Essa concentração na criação de padrões sugere que a acusação de “formalismo burguês” dirigida a Ródtchenko por aqueles que queriam uma imagética socialmente edificante era – até onde fosse o “formalismo” – bastante justa. Em outros países os fotógrafos enraiveciam seus contemporâneos mais frequentemente por apontar suas câmeras para pessoas e lugares errados do que por meio da abstração. Desde os retratos de August Sander de tipos alemães, rotulados como deturpantes pelos nazistas, até as fotos de Robert Frank mostrando os Estados Unidos como um país mais triste e mais rude do que o faziam as revistas ilustradas, até as imagens de Richard Avedon de americanos do Oeste que eram fisicamente, e talvez mentalmente, mais esquisitos do que o orgulho local admitia ser possível, até os excêntricos achados no parque de Diane Arbus, as reclamações eram “cruéis demais” ou “nós (não fica claro quem seriam “nós”) não parecemos com isso”.

A situação de Ródtchenko era tal que, mesmo se ele tivesse pretendido revelar a verdade sobre a pobreza rural, digamos, ou a miséria humana no Gulag, teria sido impossível. O mais perto que ele chegou disso foi com uma encomenda para produzir uma história ilustrada sobre a construção do Canal Mar Branco-Mar Báltico. As fotos que ele tirou foram editadas pelas autoridades e não lhe foi permitido levar embora com ele nenhuma daquelas que ele não tinha aprovado. Como sabemos que as levas de peões escavando e transportando barro são compostas por trabalhadores forçados e presos políticos, algo da miséria da situação deles chega até nós. Ródtchenko afirmou que tinha “fotografado de um modo simples, sem pensar em formalismo”. Os resultados, amplamente publicados, foram propaganda, mas contemporâneos americanos também estavam fazendo propaganda – fotos de represas construídas pela TVA [Tennessee Valley Authority: agência federal criada em 1933 para desenvolver diversas atividades econômicas na região do Vale do Tennessee], por exemplo. As fotos de Walker Evans para a Farm Security Administration [programa americano de ajuda financeira aos agricultores criado nos anos 1930, durante a Depressão] – à sua maneira quase tão formais quanto as de Ródtchenko – também continham mensagens que hoje são objeto de questionamento.

O trabalho de Ródtchenko foi feito sob maior supervisão editorial do que o de seus contemporâneos americanos, mas ele teve mais controle sobre sua apresentação do que eles. É nos pôsteres, nos layouts de revistas e livros e nas capas elaborados por ele próprio e por sua mulher que suas intenções estéticas são percebidas mais claramente. Esses itens gráficos, que estão expostos junto com fotomontagens do início dos anos 1920, oferecem um imprescindível contexto para as suas fotografias.

Organizada pela Casa da Fotografia de Moscou, a exposição está particularmente bem servida pelo livro que a instituição publicou para acompanhá-la. Tanto no livro como na exposição as fotografias são descritas como “vintage” – indicando que são cópias impressas por volta da época em que os instantâneos foram tirados -, mas algumas ilustrações ou foram produzidas a partir de cópias que não aquelas mostradas na exposição ou são milagres de aperfeiçoamento eletrônico. No retrato do poeta Nikolai Asseiev de 1929, por exemplo, o refinado detalhe da roupa e da pele só é nitidamente visível na ilustração. Portfólios de fotos de Ródtchenko reproduzidas a partir de negativos originais por seu neto estão disponíveis a um preço em torno de mil libras por cópia: teria sido interessante ver algumas delas.

Quando artefatos modernos de primeira hora que dependem de superfícies perfeitas para seu efeito mostram os efeitos do tempo, quando o cromo se racha, a tinta branca amarelece e o compensado fica arranhado, isso é pungente de um modo que a pátina dos objetos mais antigos não é. No entanto, se Ródtchenko estivesse em atividade hoje em dia eu imagino que ele teria abandonado as tesouras e a cola e adotado o Photoshop. Ainda que cópias fotográficas antigas tenham atributos que não podem ser recriados em cópias novas (materiais se alteram e negativos envelhecem), acho que Ródtchenko – que incorporava em colagens gráficas aquelas que hoje estão entre as suas fotos mais célebres – teria ficado feliz de que as víssemos rejuvenescidas.

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