Outra vez, o excesso

Colunistas

12.09.11

Se tem uma coisa que contribui para a sensação de excesso na arte, são as explicações. Porque, em geral, elas dizem melhor o que a obra queria dizer. Ou o que ela não consegue dizer por conta própria, por mais que tenha se reduzido a ilustração de uma ideia, e talvez por isso mesmo. Muito da sensação de excesso e de obsolescência da arte contemporânea vem da impressão de que ela é apenas a tradução tridimensional ou pictórica de um discurso que a precede e a dispensa. O que acaba dando às tentativas de espetacularização da arte um aspecto ainda mais desesperado e infantil, como se no meio de tanto barulho e obviedade as obras precisassem gritar e agradar sempre mais para se diferenciar umas das outras e aparecer, tornando-se, inversamente, cada vez mais parecidas e óbvias.

A primeira coisa que faço agora, por vício, ao entrar numa sala de museu, é correr os olhos pelas paredes à procura das etiquetas ou das fichas informativas, o que torna essas visitas cada vez mais exaustivas e as obras, às quais só vou me ater depois de ler as explicações, cada vez mais secundárias. Não estou fazendo o culto da ignorância e da espontaneidade, nem a crítica da crítica (seu papel, fundamental, é mesmo revelar e esclarecer a obra). Estou apenas dizendo que o excesso (e a velocidade que dele decorre) põe a crítica necessariamente na frente da obra – e o ensaio na frente da literatura.

Saí exausto da Bienal de Veneza, me perguntando se valia a pena voltar no dia seguinte para ver a o resto da exposição. Não sou um inimigo da arte contemporânea. E é claro que há coisas interessantíssimas na Bienal. É o conjunto que deixa a impressão de ser descartável,  pela repetição e pelo excesso. Saí de lá pronto para esquecer a arte. E decidido a não ler mais explicação nenhuma. Por isso, não sei se entendi as intenções da curadoria quando deparei, no dia seguinte, com três telas enormes do Tintoretto (um dos maiores mestres da pintura veneziana do século dezesseis) bem no coração da mostra. A presença desses quadros no centro do excesso, cercados de arte contemporânea por todos os lados, cria um curto-circuito, uma estranheza, e por um instante, antes das explicações, faz o espectador percebê-los como se também fossem contemporâneos, ou melhor, faz o espectador perceber-se extemporâneo, como se fosse contemporâneo dos quadros e como se afinal os visse pela primeira vez, numa mostra de arte contemporânea.

Saí dali correndo para a Academia e para San Rocco, para ver de novo os Tintorettos que eu nunca tinha entendido (e que não pretendia voltar a ver) provavelmente por pressa, ignorância e insensibilidade. E, já sem precisar de explicação nenhuma, afinal percebi o que tinha perdido. Compreendi a minha pressa, a minha ignorância e a minha insensibilidade. Foi uma espécie de revelação, um negócio que eu achava que já não era possível. Se me perguntarem o que foi, não vou saber dizer. E não será por mistificação. Eu simplesmente vi os quadros, como se fosse pela primeira vez, no presente.

Acabo de escrever isso e já me arrependo, porque percebo que estou apenas reproduzindo o tom e a regra dos blogs pessoais. Para funcionar, o blog pessoal precisa passar a impressão de uma independência de opinião baseada apenas na experiência do autor, uma opinião por assim dizer pura, autêntica e imediata, com a qual o seguidor possa se identificar; uma opinião espontânea como a experiência que não se submete a nenhum filtro ou influência crítica ou teórica. Precisa dar uma roupagem iconoclasta ao senso comum. Alardeando, por exemplo, que tem coragem de dizer o óbvio ou que gosta do que todo mundo gosta, como se, com isso, revelasse a maior originalidade ou cometesse a maior heresia. É o mundo da expressão e da criatividade.

A coragem da arte é de outra ordem. É preciso ter coragem, por exemplo, pra dizer que arte pode não ter nada que ver com democracia e nem por isso ser necessariamente fascista. E que o excesso, embora democrático, embora representando a vontade (e o direito) de todo mundo se expressar, atrapalha menos porque cansa e desfoca do que por reduzir toda arte a expressão e criatividade.

Gostaria de poder dizer que o excesso é insignificante diante da verdadeira obra. E que esta vai sempre sobressair ao excesso. Mas a arte se aprende a ver, ela nunca é natural e espontânea, porque depende de critérios subjetivos que são formados aos poucos, com esforço, por acúmulo, socialmente. A grande arte do século 19 e 20 foi formada à base de iniciativas subjetivas e excepcionais, contra o senso comum. E é contra os critérios subjetivos criados por essas obras, que se recusavam a reduzir a arte a espetáculo, expressão e princípio do prazer, que trabalha a subjetividade de quem, em nome da democracia, agora quer substituir a arte pela criatividade e a crítica pela opinião.

O que dá pra dizer, por outro lado, com base na minha experiência pessoal em Veneza (já que este é mesmo um blog pessoal), é que o excesso, nesse caso, graças à sua concentração num espaço circunscrito e num período muito curto de tempo, me ajudou a ver os Tintorettos, por reação, e me fez procurar com voracidade, depois da revelação, a obra crítica que me fizesse entender o que estava por trás da experiência. Não antes, mas depois da obra.

 

Na imagem da home que ilustra este post: detalhe de Anunciação (1583-1587), de Tintoretto (Escola Grande de San Rocco, Veneza)

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