O verão está quase chegando, mas a chamada #primaveradasmulheres resiste a dar lugar à nova – e superestimada – estação. Na primavera, como aprendemos desde cedo, a natureza (re)floresce depois de ter morrido no outono. Na #primaveradasmulheres, refloresceram as pautas políticas que já haviam animado outras ondas feministas do século 20, como a denúncia da violência sexual, o “meu corpo, minhas regras” e “o privado também é político”, tão bem recuperado neste artigo da economista Lena Lavinas.
A #primaveradasmulheres nas ruas fez eco com minhas angústias feministas de juventude e me inspirou a retrucar um argumento conservador que está em voga desde o início do século 21: as mulheres já haviam conquistado tudo que queriam, os feminismos estavam obsoletos e poderiam acabar. Foi com a filosofia de Judith Butler que consegui encontrar caminhos para responder a essa falsa afirmação. Meu interesse foi na sua insistência em renovar a teoria e os movimentos feministas justamente quando ambos estavam sob ataque cerrado das forças conservadoras.
A novidade da #primaveradasmulheres é nos obrigar a pensar em novas formas de fazer política. Não se trata mais de feministas intelectuais representando ativistas, de mulheres brancas falando em nome de mulheres negras, de mulheres urbanas representando mulheres rurais, de mulheres burguesas falando por mulheres proletárias. Não se trata de criar hierarquias entre diferentes formas de luta, porque trata-se de uma filosofia política feminista que rejeita hierarquias.
Butler me ensinou que, quando o sujeito mulher deixa de ser a razão de ser do movimento feminista, passa-se a fazer política em torno de “fundamentos contingentes”, sintagma que tem algo de provocador. Quem diz contingência diz posições, evoca significantes como acidental, fortuito, aleatório, imprevisível, indeterminado. Contingência se articula com co-ligações, ligações sem estruturas hierárquicas, rizomáticas para ficar com o termo consagrado por Deleuze e tão em voga em tempos de ativismo nas redes sociais.
A mim parece que esses fundamentos contingentes podem ser articulados a partir de duas categorias: a condição de precariedade de todo sujeito, questão que do meu ponto de vista marca um ponto de virada na filosofia de Butler, e a condição de subalternidade pensada principalmente Gaiatri Spivak. A partir da condição precária, consigo me incluir, eu, mulher, branca, heterossexual, professora universitária, em posição que não é de superioridade, porque a minha precariedade é intrínseca à minha condição de ter uma vida vivível. Posso então reconhecer que foram as relações sociais, culturais e familiares que me suportam que me permitiram cumprir uma trajetória profissional e acadêmica que me trouxe aqui, a esta coluna, a este blog. A partir da minha condição precária, posso me reconhecer e, portanto, talvez possa também ser reconhecida como alguém cuja vida depende de muitos outros. Se abandono qualquer fantasia individualista, a partir da qual a minha vida seria apenas resultado da minha autonomia, posso confundir uma polaridade histórica que divide, de um lado, liberais que entendem a vida como algo único do indivíduo, isolado de tudo que o compõe, e de outro, comunitaristas para os quais não pode haver vida separada dos laços afetivos, relações familiares e sociais que a constitui.
Assim encontro a oportunidade de abrir caminhos para a construção de coligações – a partir de fundamentos contingentes – com aqueles cujo reconhecimento da própria precariedade me permite traçar laços, vínculos, alianças, afetos, aqui no sentido mais estrito do termo, afeto como aquilo que me toca, afetação dos efeitos do outro em mim. Se aceitamos que a condição de precariedade marca a condição humana, podemos aceitar também que partilhamos essa precariedade, ainda que alguns de nós sejam mais precários que outros.
Num texto clássico dos estudos subalternos, outra teórica feminista, a indiana Gaiatri Spikav pergunta: “pode o subalterno falar?” Sua resposta – não – é um perfomativo, porque dizer não já é dizer algo. Quando ela diz que o subalterno não pode falar, também diz que não há, e eu cito, “valor algum atribuído à mulher como um item importante nas listas de prioridade globais, o que dá a mulheres intelectuais uma tarefa muito específica a cumprir”. Sobre essa subalternidade, alega Spivak, nenhuma estrutura de representação pode dar conta. No contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história, não pode falar, e é irremediavelmente heterogêneo. Quando Spivak diz não, o subalterno não pode falar, acaba por dizer também que toda fala do subalterno é sinal de insurgência. No contexto colonial latino-americano, o sujeito subalterno feminino é ainda mais profundamente ignorado, invisível, silenciado. E no contexto brasileiro, o sujeito subalterno feminino negro, a mulher negra, é ainda mais profundamente ignorada, invisível, silenciada e explorada. É um gesto político fundamental reconhecer que a subalternidade da mulher negra e pobre é diferente da subalternidade da mulher branca. Que existe subalternidade masculina nas relações capitalistas, que é diferente da feminina. Que a subalternidade do homem homossexual é diferente da subalternidade da lésbica, que essas diferenças são marcadas pelas especificidades das condições de precariedade dentro desses grupos e não é homogênea dentro dos grupos.
Precariedade e subalternidade talvez possam, juntos, formar “fundamentos contingentes” da #primaveradasmulheres. Com os fundamentos contingentes entre precariedade e subalternidade, posso promover coligações entre todos e todas que precisem lutar contra as mais diversas formas de violência de estado, tarefa urgente no Brasil do século XXI. Por que a revolução será feminista ou não será revolução, como propõe #apartidA e como mostra a força da jovem Marcela Nogueira dos Reis, 18 anos, em sua emblemática resistência à repressão da Polícia de São Paulo contra a ocupação das escolas.