Só falta o cheiro

Literatura

17.12.15

Tive severos problemas de frequência a partir de dado momento da minha vida escolar, lá no século passado. Especialmente quando matriculado no que agora se conhece como ensino médio, costumava matar pelo menos um dia de aula por semana para pegar o ônibus na direção oposta e me enfurnar em alguma biblioteca de Porto Alegre. Passava dias inteiros por ali, manuseando e lendo todo tipo de livros e rabiscando anotações sem nenhum propósito determinado além da alegria de conhecer coisas novas, aprender mais um pouco, acumular e processar informação para tentar interpretar o mundo de um modo menos simplório.

Estantes de uma das bibliotecas da UFRGS espelhadas por Porto Alegre

Naquela época, final da década de 1980 e início dos anos 1990, meu esconderijo favorito era a biblioteca central da PUCRS. Não só pelo imenso número de volumes sobre todos os temas possíveis concentrados num único lugar, mas pela coleção de obras raras e manuscritos. Na UFRGS, onde as bibliotecas são setoriais e o acervo fica espalhado pela cidade, também havia a Coleção Eichenberg, com todo tipo de preciosidades. Por algum motivo, todavia, era mais complicado ter acesso a ela sendo um metaleiro adolescente sem nenhum vínculo acadêmico. Na PUCRS bastava marcar hora, não havia grandes burocracias nem problemas com minha camiseta esfarrapada do Hellhammer: era escolher o livro, esperar a data, vestir as luvas e, especialmente, preparar o olfato.

Todo bibliófilo é obcecado pelo cheiro dos livros, uma fixação que compreensivelmente faz os não iniciados revirarem os olhos. Na qualidade de membro desavergonhado da classe, enterro o nariz sem dó em qualquer livro que me cai na mão. Ignoro a rinite alérgica e uso uma metodologia refinada ao longo do tempo para apreciar todos os aromas fornecidos pela combinação de papel, tinta, adesivos e outros materiais usados em encadernação. Ainda que um livro novinho tenha seu charme para qualquer farejador de páginas, este sommelier de livros que vos digita aprecia especialmente os volumes mais antigos. Os encantos da hidrólise ácida, que aos poucos vai degradando o papel, fornece o inconfundível cheiro adocicado do etilbenzeno e do tolueno (para uns, os livros mui velhos; para outros, a cola de sapateiro), às vezes com notas excelentes de baunilha (vanilina) ou algo entre amêndoas e cerejas (benzaldeído), e ocasionalmente até mesmo certa complexidade floral (não me lembro do nome do composto). E para quem leva a sério dessa experiência, nada supera um bom e velho códice centenário.

Daí meu fascínio por bibliotecas com coleções de livros antigos. Sim, há também a fruição estética do objeto, o prazer do conteúdo (quando compreensível), a presença severa da aura histórica, enfim, o combo completo. Mas antes de mais nada, preciso admitir, meu negócio é o cheiro. Em 1994, quando comecei a usar a internet em tempos pré-web, explorando gophers de bibliotecas, senti a mesma alegria e senso de descoberta das minhas escapadas para a PUCRS. Só tínhamos acesso ao conteúdo dos livros, em texto puro, mas a facilidade com que tudo podia ser consultado me fazia ignorar o que faltava. Aos poucos estava tudo ali, digitalizado em altíssima resolução e disponível a qualquer momento, em qualquer lugar. Sem a mesma aura, não é um problema admitir, mas quando você pode furungar tesouros no conforto da cama, elegantemente trajado com suas cuecas preferidas e mais nada, isso deixa de ser tão importante.

Muitas horas de vida dediquei (e pretendo dedicar muitas, muitas e muitas mais) ao pioneiro Projeto Gutenberg, à pantagruélica e onívora seção de livros do Internet Archive, ao controverso Google Books (hoje um tanto parado) e a diversas iniciativas menores, como minha querida Wellcome Library (ah, o “Compendium rarissimum totius Artis Magicae sistematisatae per celeberrimos Artis hujus Magistros”, que delícia).

Mas nada disso me deixou pronto para o momento em que conheci a Biblioteca Digital Mundial. Criada em 2009 através de uma parceria entre a UNESCO e a mítica Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, a BDM congrega conteúdos de dezenas de bibliotecas, museus e instituições culturais (aqui a lista completa), dentre elas nossa Biblioteca Nacional. São quase 13 mil documentos, entre livros, manuscritos, fólios, gravuras, fotografias, cartazes e mapas, originários de 193 países e englobando (aqui recomendo a decência básica de respirar fundo e assumir o devido ar de respeito e contemplação e fascínio) dez mil anos de história humana. Tudo perfeitamente organizado e classificado, com metadados consistentes e meticulosos, mapas interativos, arquivos disponíveis para consulta online e download e navegação em sete idiomas. É, pelo menos até agora, o ápice da experiência da bibliomania na internet.

Página digitalizada do Códice Florentino na Biblioteca Digital Mundial

Na Biblioteca Digital Mundial é possível saltar de um papiro com uma maldição de Ártemis, produzido no Egito no século IV AEC, direto para “Americae Sive Quartae Orbis Partis Nova Et Exactissima Descriptio”, primeiro mapa detalhado das Américas, criado por Diego Gutiérrez e Hieronymus Cock em 1562. Quer conhecer de perto um dos mais antigos textos impressos? Ali está o japonês “Hyakumanto darani”, de 770. Para quem gosta de Bíblias (todos nós), temos entre outras a Bíblia de Gutenberg (1455), é claro, mas também a Bíblia Poliglota Complutense (1514), primeira edição impressa multilíngue desse livro sagrado, e uma de minhas maiores fascinações de infância, o Codex Gigas (séc. XIII), mais conhecido pela simpaticíssima alcunha de “Bíblia do Diabo”. Os encantadores glifos Dongba, da China, podem ser conhecidos nos “Anais de criação”. O célebre Códice Florentino, ou “História geral das coisas da Nova Espanha” (1577), em náuatle e espanhol, está ali, revelando de perto o mundo dos astecas na época da conquista por Hernán Cortés. É muita coisa. Visitem, cavem bastante, criem seu próprio percurso, compartilhem descobertas nos comentários.

Só falta o cheiro. É, só falta o cheiro. Alguém resolva isso, por favor. 

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