Sobreviver ao Sónar

Música

14.05.12

O last.fm, site obrigatório para quem é obcecado tanto por música como por estatísticas, registra tudo que ouvi em MP3 desde que me cadastrei, em outubro de 2005. De acordo com o site, a banda que mais escutei nos últimos sete anos foi Mogwai, grupo escocês do gênero “pós-rock” (termo criado por jornalistas culturais que procuravam rotular uma espécie de rock instrumental baseado em camadas, que alterna momentos de silêncio e ruído). 1.524 vezes ouvi músicas de Mogwai, informa o last.fm. Isso é tempo demais na vida de uma pessoa. Se eu fosse membro do site desde 2002, quando conheci o grupo, sabe-se lá em que número estaria. Portanto, quando recebi a notícia de que a banda tocaria no festival Sónar, em São Paulo, fui tomado por uma forte ansiedade.

Tenho um problema ridículo de ansiedade com esse tipo de evento. Lembro-me de não dormir antes do show de Joanna Newsom em 2007, em Porto Alegre, e de chegar três horas antes para a despedida dos palcos do LCD Soundsystem, na mesma cidade, em 2011. Portanto, comecei a colocar empecilhos mentais para não ficar tão ansioso com a vinda do Mogwai: primeiro, que o disco novo deles, Hardcore will never die, but you will, era o mais fraco de todos, e que a maioria das músicas que a banda tocaria seria desse disco; segundo, que seria em um festival, junto a duzentas outras bandas, que festivais são caóticos, que o show seria curto, e que eu realmente não deveria ficar ansioso para um show que seria decepcionante. Tentei me convencer que o duo eletrônico Justice provavelmente faria um show melhor, ainda mais depois que assisti ao documentário A Cross the universe, que registra performances empolgantes e plateias enlouquecidas. Tudo para conter a ansiedade absurda que me tomaria com a certeza de que ver um show do Mogwai seria realizar um sonho de adolescência.

Cheguei ao Sónar no cair da noite, acompanhado de vários amigos, cada um com uma expectativa grande para um show diferente. Fui direto para o espaço onde seria realizado o show: um teatro pequeno, com cadeiras no fundo e um bom espaço para ficar cara a cara com os músicos. Confortavelmente sentado, vi a performance da dupla Alva Noto + Ryuichi Sakamoto, que sempre gostei de ouvir em casa, especialmente lendo algum livro, mas que, por ser um duo de ambient, imaginei que fariam um show tedioso. Estava enganado. Foi um espetáculo memorável, com projeções visuais que casavam perfeitamente com o que era executado no piano e em um laptop. Para minha surpresa, a plateia (que estava em bom número) fez um silêncio extremamente respeitoso (e necessário) para as músicas delicadas que pareciam se desenhar no ar.

Quando encerrou, pensei em dar um pulo no show do CEE Lo Green, em um palco bastante distante, que começava trinta minutos antes, mas logo desisti, convencido por uma amiga de que devíamos conseguir um lugar bem na frente para o show do Mogwai.  A banda escocesa entrou com quinze minutos de atraso, comentando que a última vez que estiveram no país tinha sido dez anos antes. As duas primeiras músicas, como previ, eram do disco novo, músicas que eu não gostava muito, mas que ficaram bastante agradáveis ao vivo. Um amigo sugeriu que, no caso do show do Mogwai, não era tão importante ficar de frente para os músicos, mas próximo da caixa de som. Foi o que fiz. E, quando começaram os primeiros acordes de “I’m Jim Morrison, I’m Dead”, tudo fez sentido.

As músicas do Mogwai podem ser introspectivas e lentas em diversos momentos, mas esses momentos estão lá, em parte, para deixar os trechos ruidosos ainda mais marcantes. E o ruído logo apareceu, um ruído forte, que reverberava nas caixas torácicas, preenchia o ambiente, fazia tremer o chão, o palco, toda a estrutura do local. Logo em seguida, voltaram a tocar músicas do disco novo, que desta vez soaram melhores do que no disco, e, mais chocante ainda, passaram a fazer sentido para mim. No disco, pareciam demasiado ensolaradas. No show, carregadas de peso, ganhavam outra dimensão.

Depois de “How to be a Werewolf”, com Stuart já nervoso com o pouco tempo que tinham no palco, Mogwai chutou o balde e tocou o horror. “Mogwai fear Satan”. Foi aí que tudo veio abaixo. Uma saraivada de ruído, distorção e microfonia. Tiago “Ductilíssimo”, meu eterno companheiro de shows marcantes, apenas olhou para o teto e começou a urrar. Tudo que consegui fazer foi fechar os olhos e sacudir o pescoço, brandindo o punho no ar. Parecia fazer sentido. Ao meu redor, pessoas tapavam os ouvidos, alguns deixavam o local. Mogwai ao vivo é uma experiência masoquista, sem dúvida, mas também uma experiência purificadora. Desde aquele momento, não houve volta. Músicas tranquilas, como “2 rights make 1 wrong”, ficaram sombrias, e a organização pediu para eles encerrarem antes da hora, sem poder proporcionar um final apoteótico. A plateia vaiou, e eles puderam tocar a faixa de despedida. Stuart, irônico, bradou “Breaking the law!!!” no microfone, e engatou uma performance ensurdecedora de “Batcat”. No dia seguinte, vi um registro no youtube do momento. Garanto que o registro, apesar de bem filmado, não serve para muita coisa. Não registrou o que ouvi e testemunhei. A palavra “pós-rock”, que é utilizada pela mídia com um sentido – se refere ao uso de guitarras para criar texturas, não melodias – pareceu significar outra coisa: algo que realmente vem depois do rock. O fim da música, o fim da melodia, o fim da harmonia. Não é à toa que, logo após o fim da música, perdi a audição por dois segundos, dois segundos que foram bem mais assustadores do que parece. Quando voltei a escutar sons no ouvido direito, ganhei de presente um zunido que durou quatro horas. Talvez não seja muito saudável ficar do lado da caixa de som. Mas, pensando bem, até que valeu a pena.

Sim, a noite continuou, teve o show do Justice que, dizem, foi ótimo. Não sei ao certo. Assisti ao duo francês, claro. Fiquei distante do palco, em um espaço que dava para dançar bastante, “dance myself clean” (parafraseando James Murphy), mas não consegui entrar completamente no clima. Nada parecia fazer muito sentido depois da destruição proporcionada pelo Mogwai. Há muito masoquismo em presenciar um show do grupo escocês, mas há também uma lição ali. Por mais clichê que seja, sinto que saí mais forte da experiência. É preciso ir ao limite do caos, da ruína, para poder ressurgir, ou melhor, ressuscitar, com a alma limpa. A velha história da catarse. Se isso não é arte, não sei o que é.

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