Depois de nove meses gozando do sentido de ordem dos alemães, fui passar o Natal no Rio. E o que é que nove meses, a levar pito de velhinhas toda vez que atravessava a rua com o sinal de pedestres fechado (e sem nenhum carro vindo de lugar nenhum) ou pegava a ciclovia na contramão ou atravessava na faixa de pedestres sem desmontar da bicicleta, fizeram comigo? Já não sou capaz de ver nada além de sexo nas ruas (e ciclovias) do Rio.
Fiquei na maior excitação quando soube que, assim como em Paris, Bruxelas e Berlim, agora também há bicicletas públicas no Rio de Janeiro. Baixei o aplicativo no meu telefone antes mesmo de pegar o avião e corri para a estação mais próxima de casa assim que cheguei à cidade, no final da tarde, quando todo mundo estava saindo da praia, de bicicleta. Só restava uma na estação da Aníbal de Mendonça. Tive sorte de chegar segundos antes de um casal de banhistas. Estavam determinados a pegar aquela bicicleta. E resolveram esperar ao meu lado, no caso de alguma coisa não funcionar, enquanto eu discava o número indicado para liberá-la. Ao meu lado é brincadeira. Resolveram esperar a dez centímetros de mim, para não deixar dúvida quanto à sua precedência no caso de eu dar com os burros na água. E como não tinham nada a fazer além de me secar, e para não perder tempo enquanto esperavam, de biquíni e sunga, resolveram dar um chupão.
Não será por estar na Alemanha há nove meses, levando pito de velhinhas, que eu agora vou liderar a cruzada das senhoras católicas contra o chupão. Mas havia ali um negócio conspícuo: o casal tinha se postado literalmente a dez centímetros de mim, o que tornava muito mais complicados – extremamente complicados – o processo de liberação da bicicleta e a minha concentração diante dos malabarismos de línguas e bocas. Eu estava fascinado. Já não ouvia qual número devia apertar no telefone. Talvez fosse uma tática de guerra do casal. De qualquer jeito, graças a um esforço redobrado para pensar em outras coisas, saí vencedor. Era um casal simpático. E tinha espírito esportivo. Assim que liberei a bicicleta, pararam de se beijar, sorriram e foram embora resignados.
Se é que ainda havia alguma dúvida, os primeiros metros na ciclovia deixaram bem claro que eu já não estava em Berlim, perseguido por velhinhas a zelar pela obediência à lei. Mas isso não se traduzia necessariamente em liberdade. Logo entendi que, como na vida, tudo é possível numa ciclovia carioca. “É o maior estresse”, confirmou depois o filho de amigos, que no mesmo dia preferiu correr o risco de ser atropelado por um carro na rua a continuar com a bicicleta desviando do inesperado na ciclovia da praia. É claro que tudo tem um lado positivo – e, nesse caso, o exercício pelo menos é completo, físico e mental. A ciclovia carioca exige do ciclista uma atenção permanente, cobrindo 180 graus, para não se esborrachar com skates, bicicletas, carrocinha de picolé ou o que quer que venha na contramão. Sem falar nos cachorros e pedestres que surgem do nada, quando menos se espera, para passear e correr na ciclovia. Só os ciclistas não estão ali a passeio.
Ao me ver vindo em velocidade acelerada (e estabelecer o que se chama “contato ocular”), uma banhista, que arrastava pela calçada uma criança aos berros, aproveitou para pular na minha frente, como se quisesse testar os freios da bicicleta e os meus reflexos, e bem sonsa, dando pinta de cachorra, arrematou, sorrindo: “Ai, des-cul-pa…”, antes de sair rebolando, puxando a criança aos gritos. Não havia uma única velhinha alemã a quem eu pudesse recorrer para expressar a minha exasperação.
Tampouco adiantava tocar a sineta acanhada da bicicleta para alertar velhos amigos que se reencontravam e conversavam animadamente, na ciclovia, sobre os anos que passaram sem se ver; ou o inevitável casal (mais um) se beijando num amasso indiferente a skates, bicicletas e carrocinhas de picolé. A sineta só serve para atiçar o espírito de skatistas a mil pela contramão, com o nariz empinado, prontos a desafiar o seu sangue frio e ver até onde você aguenta antes de desviar. Também na ciclovia, pai bombado, de sunga e tatuagem, e mãe gostosa, de fio dental, garantiam ao filho e à filha, pequenos e boquiabertos, que Papai Noel existe (e tinham a prova: se a fulaninha ganhara passagem pra Disney bem antes do Natal, e já estava lá, era porque o Papai Noel é um só e os presentes são tantos que ele tem de ir adiantando o serviço pra poder dar conta do recado).
Olha só: fiquei preocupado. Só me faltava voltar pro Brasil possuído pelo espírito de velhinhas prussianas, acostumadas a conviver em paz com gente que tira a roupa em público ao primeiro raio de sol, expondo corpos assexuados em locais reservados pra isso, em parques, praias e lagos, mas que passam a brandir a bengala assim que detectam o menor sinal de transgressão. Berlim é sem a menor sombra de dúvida uma das cidades mais liberais do planeta, provavelmente muito mais liberal que o Rio em um monte de coisas. Em Berlim, há lugar pra tudo e pra todo mundo, para os nus e para os vestidos, mas com fronteiras muito bem demarcadas entre o público e o privado, cada coisa no seu lugar, sem riscos nem aventuras. No Rio, todo mundo está mais ou menos nu em toda parte (e não é à toa que é proibido tirar a roupa na praia, uma vez que não existe corpo assexuado) e até andar de bicicleta em ciclovia é uma aventura de alto risco. Foi preciso um amigo, que de alemão e de católico não tem nada, me dizer, babando de felicidade, que neste final de ano o Rio estava especialmente “feroz”, para eu entender que não tinha sido o único a notar. E, de volta ao mundo previsível das velhinhas prussianas, passar a defender urgentemente o intercâmbio cultural. Pelo bem dos dois mundos.
* Na imagem que ilustra este post: Everything you own, including the shirt off my back (2009), instalação da artista americana Mary Mattingly