O momento-Malcolm

serrote

26.09.11

Janet Malcolm domina como poucos a arte de ser desagradável. O mal-estar que geralmente provoca no leitor está longe de ser o objetivo primeiro de seu trabalho como jornalista. Mas é, isso sim, a consequência natural de exercer a profissão do jeito que ela a concebe – um rigoroso exame do mundo e, também, de si mesma, como se pode ler numa longa entrevista à Paris Review.

Em ensaio publicado no número 8 da serrote, Otavio Frias Filho lembra que é difícil escrever um texto sobre ela sem citar a frase de abertura de O jornalista e o assassino. Não sou eu, portanto, que vou quebrar a tradição. Lá vai: “Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável”.

Pois foi justamente essa frase que me veio à cabeça ao ler, na New Yorker da semana passada, o extenso perfil que ela faz de Thomas Struth, um dos queridinhos da fotografia contemporânea. No melhor estilo da revista, Malcolm viajou à Alemanha, onde Struth nasceu e trabalha, e acompanhou sua rotina de trabalho, do registro estetizado de uma fábrica de elementos de energia solar à ampliação do recente portrait que fez da rainha Elizabeth II.

Por sua natureza, incluído um tanto forçadamente num “fashion issue” da revista,  o perfil não tem o alcance de seus trabalhos mais extensos e complexos – da barra-pesada de O jornalista e o assassino à discussão sobre os limites dos biógrafos em A mulher calada, que investiga a indústria editorial em torno de Sylvia Plath. Mas toca diretamente o tema de Diana & Nikon – Essays on tha aesthetic of photography, seu primeiro livro, que continua inédito no Brasil 31 anos depois de lançado.

Tudo vai muito bem na narrativa pontuada por detalhes reveladores, ligeiras manifestações de ceticismo e econômicos elogios ao trabalho de Struth. Até que, numa conversa sobre a formação artística do fotógrafo, conversa camarada num café de Dusseldorf, o caldo entorna. Ele conta como, tendo estudado arte com Gerhard Richter, foi parar na mão do Hilla e Bernd Becher, casal de fotógrafos conhecido pelas fotos austeras de ambientes industriais.

Entusiasmado, Struth diz que Bernd abriu sua cabeça em raciocínios heterodoxos, como os que transformam as fotografias de Atget, que sempre mostram uma Paris vazia e fantasmagórica, num dado fundamental para entender Proust. “Não entendi. O que Atget tem a ver com Proust?”, protesta Malcolm. Diante da resposta atrapalhada do fotógrafo, segue-se o seguinte diálogo:

– Você leu Proust quando estudou com os Bechers?

– Não, não. Não li.

– Você já leu Proust?

– Não.

– Então qual o sentido de relacionar Atget com Proust?

Struth riu.  – Talvez seja um mau exemplo – disse.

– É um péssimo exemplo – eu disse. E nós dois rimos.

Malcolm muda de assunto mas logo volta ao ponto constrangedor. E aí está o grande momento da reportagem, o momento que a conecta impecavelmente com toda uma obra. Com a palavra, a autora:

“Quando estávamos saindo do café, Struth disse, ?Estou incomodado com Proust e Atget’. Struth é um sofisticado e experiente entrevistado. Ele reconheceu o momento Proust-Atget como o equivalente jornalístico de um dos ?momentos decisivos’, aqueles em que aquilo que o fotógrafo enquadra salta e diz ?Isto vai ser uma fotografia’. Eu fiz alguns muxoxos amigáveis, mas nós dois sabíamos que minha fotografia já estava a caminho da câmara escura do oportunismo jornalístico”.

Aos 77 anos, Janet Malcolm não deixa a peteca cair. E, ao expor uma infantilidade de seu entrevistado, uma vaidade menor, declara a necessária dureza em tratá-la – não sem botar em dúvida até mesmo sua própria atitude, que aventa estar próxima ao “oportunismo”.

No perfil de Thomas Struth, este é mais um elemento entre tantos outros. No conjunto dos livros e reportagens da autora, é um “momento decisivo”. Ali um texto jornalístico fica longe tanto da cordialidade frouxa quanto do sensacionalismo para tornar-se um texto de Janet Malcolm.

, ,