Há artistas que emergem da memória visual como ícones: Tarsila lembra o design e o cromatismo modernista de intensa brasilidade; Pancetti, as marinas; Guignard, a paisagem onírica das montanhas de Minas; Volpi, as bandeirinhas. No caso de Lasar Segall, as imagens que vêm à tona em um primeiro momento são aquelas produzidas nos anos 1910, coerentes com a dramaticidade dos fundadores do expressionismo alemão: figuras humanas com intensas angulações, os temas da pobreza, da prostituição e da morte, a herança judaica de sua cidade de nascimento, Vilna (na época sob o império russo), em que prevalecem cores marrons, ocres e tons sombrios. Nessa vasta iconografia em que ressoam ecos da Primeira Guerra, e que imprimiram sua marca em toda uma geração, sobra pouco espaço para o prazer e para cores mais vibrantes. O mesmo aconteceria com as grandes obras produzidas no Brasil durante a Segunda Guerra. O horror do Holocausto faz com que o fantasma da fome, da guerra e da imigração, retorne a suas obras umas duas décadas após a sua chegada ao Brasil; entre elas, óleos consagratórios como Navio de emigrantes, Pogrom e Guerra.
Mas é justamente o encontro com a terra brasilis que o faz descobrir rapidamente uma nova luz e uma nova palheta de cores. O recém-imigrado obtém na paisagem brasileira um habitat ideal para a recriação de antigos temas, agora tropicalizados, como é o caso do mangue no Rio de Janeiro, reduto tradicional da prostituição feminina. No Brasil dos anos 20, Segall encontra a vibração dos modernistas, descobre as cores tropicais que marcam a sua etapa solar (entre outros, Menino com lagartixas e Bananal), e avança em direção a uma pintura mais apaziguada com os espectros da guerra, cedendo lugar a um hedonismo ausente na fase expressionista.
A combinação de sensualidade com brasilidade não poderia encontrar melhor expressão do que em mulheres ou casais alongados em redes. De herança indígena, e atravessando o período colonial, a rede passou a fazer parte do cotidiano de grandes parcelas da população do norte e nordeste, e foi também adaptada para as varandas nas fazendas e casas de campo paulistas, para efeitos de puro lazer, relaxamento e todas as conotações que Mário de Andrade, em Macunaima (1928), imprimiu à preguiça. Aliás, numa clássica ponta-seca, Segall retratou Mário de Andrade, de forma pensativa, fazendo anotações, sentado – não deitado, numa rede (Mário na rede, 1929, na fazenda Santo Antônio, de Dona Olívia Guedes Penteado, em Araras).
A maior parte das obras que envolvem redes foi realizada no início da década de 1940 e tem como protagonista principal Lucy Citty Ferreira, pintora, discípula e, de longe, a modelo mais retratada por Segall. E da iconografia de Segall de indivíduos deitados repousando em redes, o óleo da coleção do Instituto Moreira Salles, Casal na rede, de 1947, destaca-se sobremaneira. Ao contrário das outras imagens, totalmente estáticas, a relação amorosa do casal neste óleo sugere movimento; os cabelos esvoaçantes da figura feminina revelam o caráter cinético da postura, assim como o seu braço direito, que singra o ar. O embalo do casal na rede é liberador da força amorosa e de um discreto erotismo no instante do retrato. O vaivém, os cabelos, e o braço que prende a figura feminina pela cintura, formam uma unidade. O masculino e o feminino, fundidos pelo abraço e pelo balanço, e com os rostos quase colados, estão propositalmente contrastados pelos tons escuros da rede e do corpo masculino, com o brilho e a brancura da mulher, que ocupa o lugar central do quadro.
Casal na rede, quase um instantâneo, sugere também a partir da mobilidade da rede, a fugacidade do amor. Pintada dez anos antes de sua morte repentina em 1957, Segall tem cinquenta e seis anos de idade no momento da execução deste óleo.
Num estudo sobre as formas nas pinturas de Segall dos primeiros anos da década de 1940, Roger Bastide destaca nelas a prevalência das formas ovais, arredondadas e elípticas (Pogrom, Navio de emigrantes, por exemplo). Nesta chamada de atenção para as curvas (contrárias ao caráter retilíneo que apareceria nas florestas dos anos 1950), acredito que a rede, como tema que surge em algumas de suas pinturas e desenhos, se encaixa perfeitamente neste olhar estrutural do sociólogo francês [1]:
é curioso notar que [Segall] volta nas suas grandes telas a esse envolvimento do assunto por uma curva, numa elipse, como se ela fosse agora a figura que melhor exprimisse a ideia de acabamento, de perfeição, de conclusão de um estado. Mas o ovo do mundo é também considerado o lugar do novo nascimento pois, certamente, a conclusão de um estado é bem o começo de um outro
Nesse sentido, a forma e a profundidade ovaladas da rede funcionam como uma espécie de casulo, de aconchego amoroso, de um novelo, na contramão da errância de suas personagens das primeiras décadas do século (Eternos caminhantes, Rua de erradias, Navio de emigrantes). O Brasil oferece ao pintor nascido na Lituânia não apenas uma revolução de cores e de novos temas, como a segurança e a harmonia de um lirismo amoroso que se identifica, por meio do índice da rede, com a sua nova pátria (Segall se naturalizaria brasileiro em 1927, poucos anos após a sua chegada). A rede passa a ocupar assim um espaço pictórico de valor simbólico significativo na produção segalliana do período.
[1] BASTIDE, Roger. “O oval e a linha reta: a propósito de algumas pinturas de Lasar Segall”, em Segall realista (catálogo de exposição, curadoria de Tadeu Chiarelli, em São Paulo-Fiesp, Curitiba-Mon, Rio de Janeiro-Instituto Moreira Salles). São Paulo: Museu Lasar Segall, 2008-2009, p. 224. Texto original publicado em O Estado de S.Paulo, 29.4.1944.