O romance da arte

Colunistas

20.01.16

Muito da arte contemporânea já vem com legendas. É uma arte retórica, redundante e ilustrativa, que dispensa a crítica. Desbaratada pela retórica das obras, a reflexão vai sendo progressivamente constrangida à redundância, a repetir e explicar o que a obra já repetia e explicava. É uma situação bem diferente da arte moderna, que foi um terreno fértil para o pensamento estético – ao mesmo tempo revelador das obras, inovador e autoral.

O escritor inglês Julian Barnes

Julian Barnes bebeu na modernidade literária e artística francesa, em Flaubert para começar (Barnes foi revelado internacionalmente, em 1984, com O papagaio de Flaubert) mas também em Manet, Bonnard, Cézanne e muitos outros. Na introdução a Keeping an Eye Open (Mantendo um Olho Aberto), coletânea de ensaios publicada nos Estados Unidos no final do ano passado, o escritor inglês conta que foi a pintura francesa e em especial as obras de Gustave Moreau que o fizeram sentir a urgência de escrever sobre arte. O livro trata precisamente dessa dificuldade.

“Quem se propusesse a fazer qualquer uma das artes na segunda metade do século 20, tinha de levar em conta o modernismo, entendê-lo, digeri-lo, descobrir por que e como ele mudara as coisas.” Barnes elegeu o modernismo como o “seu” movimento artístico, mais por sincronia do que por afinidade. O escritor é o primeiro a reconhecer que é muito mais fácil abandonar o realismo na pintura do que na literatura. Sua ficção não tem nada de modernista: “Um crítico literário em Nova York chegou a me chamar de ‘pré-pós-modernista’, um epíteto que ainda estou tentando entender”.

A dificuldade de falar de arte salta aos olhos nas escolhas do ficcionista. Barnes procura pinturas que também sejam romances e pintores que também sejam personagens. Escreve sobre um quadro como se resenhasse um romance (ou o redigisse). Sua perspectiva da pintura é narrativa. É a história que o interessa. É pela história que ele consegue compreender o quadro.

Flaubert dizia que “explicar uma arte por outra é uma monstruosidade. Você não encontrará em nenhum museu do mundo uma única grande obra que precise de explicação. Quanto mais texto houver no guia do museu, pior a pintura”.

O método narrativo de Barnes até que lhe permite algumas formulações brilhantes, como no texto sobre “A Balsa da Medusa”, de Géricault. O quadro retrata o instante em que os sobreviventes de um naufrágio na costa da África ocidental, depois de quinze dias em uma jangada à deriva em alto mar, afinal avistam um navio no horizonte. Barnes narra a tragédia em detalhes antes de interpretar a tela como uma performance da decadência que ela representa. É a ideia romântica (e romanesca) de uma pintura que progride, física e materialmente, rumo à morte que ela representa: “A estrutura emocional da obra de Géricault, a oscilação entre esperança e desespero, é reforçada pelo pigmento: ‘A Balsa’ contém áreas claramente iluminadas, em violento contraste com faixas da mais profunda escuridão. (…) Géricault usou betume para alcançar o brilho sombrio que ele buscava.  Mas o betume é instável quimicamente (…) e uma decadência lenta e irreparável da superfície pictórica era inevitável. (…) A obra-prima, uma vez terminada, não para: continua avançando ladeira abaixo. Nosso principal especialista em Géricault confirma que o quadro hoje está em parte arruinado.”

Sobre Manet, Barnes escolhe um quadro com três versões e outra história trágica para contar: “A Execução de Maximiliano”, que representa a morte do imperador Ferdinando Maximiliano no México. Nesse caso, a ausência de comentários de época sobre a obra deixa o escritor tão perdido quanto a opacidade do quadro deixava seus contemporâneos. E, diante dessa opacidade, Barnes é obrigado a transferir seu interesse da história para o tempo, do passado para o presente e para fora do quadro: “Por quanto tempo olhamos uma grande obra?”, por exemplo, é pergunta de narrador. Se o espectador de repente tem tanta importância quanto a pintura, é porque o tempo os une. Barnes submete o quadro que lhe negava uma história a uma nova narrativa, presente e exterior, que passa pelo espectador.

A interpretação romanesca prossegue, com tintas psicológicas, nos célebres retratos coletivos de Henri Fantin-Latour (“Um Ateliê em Batignolles” e “Um Canto de Mesa”) que reúnem nomes importantes da cena artística e literária da época. Barnes interpreta a pintura pela construção psicológica dos personagens em cena. O quadro é a revelação da personalidade do pintor: “Quando os críticos da época analisaram esses conjuntos de colegas que não sorriam, não interagiam nem se tocavam, o que mais os incomodou — fora o ego do artista e a autopromoção do grupo — foi a falta de unidade formal. (…) O que interessa Fantin-Latour e o que ele representa nos quadros é a negociação interna do indivíduo com o grupo. A aparente inadequação é deliberada: os partícipes estão tentando proteger e manter suas individualidades na presença de irmãos e colegas que podem ser também concorrentes e rivais”.

O escritor acredita que a arte que permanece sempre traz em si uma verdade. O tempo trabalha a favor dessa verdade, mas também trabalha a favor da mistificação e da ignorância, criando um mistério que não passa de desinformação e esquecimento. Para Barnes, todo quadro tem uma história para contar, uma história a ser revelada. E embora reconheça o aspecto redutor que o entorno histórico e biográfico possa ter na explicação de um quadro, não resiste a recorrer à história e à biografia para entender as obras.

É quando precisa definir o que é arte, que o ponto de vista do narrador se revela mais banal e pleonástico: a medida da arte, para Barnes, é “excitar os sentidos e a mente”. É aí que um pouco de mistério e mistificação começa a fazer falta. O próprio Barnes acaba se rendendo aos limites de sua compreensão narrativa: “A intenção do artista importa menos para o espectador do que a intenção do autor para o leitor. O espectador reinventa a obra, enquanto o leitor não consegue desvinculá-la da vontade do autor”.

O impasse fica claro no texto sobre Lucian Freud, um pintor cuja obra é difícil de desvincular de sua biografia. Barnes desconsidera o que o artista tem a dizer sobre o próprio trabalho (diz que o que importa é a obra), mas não consegue falar da obra sem recorrer a anedotas sobre o artista.

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