Legado do Avellar

Cinema

18.03.16

Nos sete anos em que esteve à frente da coordenação de cinema do IMS, José Carlos Avellar produziu para o site e outras publicações do Instituto textos e depoimentos memoráveis, alguns deles aqui reunidos em forma de homenagem ao colega de trabalho que morreu na manhã desta sexta-feira (18), no Rio. Referência do cinema brasileiro aqui e mundo afora, Avellar deixa, além de um vazio imenso entre amigos e admiradores, um acervo de conteúdo crítico e informativo capaz de rememorar cenas específicas, descrevendo em detalhes aquele plano singelo de um filme quase esquecido de décadas atrás. Artigos e ensaios como estes aqui republicados são agora parte da história do cinema. Que o brilho das ideias e pensamentos do autor ilumine o luto por sua perda.

 

New York, New York

Por José Carlos Avellar

Carey Mulligan em Shame, de Steve McQueen

Assim como Wim Wenders para fazer Pina armou uma estrutura apoiada nas possibilidades expressivas da imagem em 3D, assim como Alfred Hitchcock, em O homem errado (The Wrong Man), e Edward Yang, em As coisas simples da vida (Yi Yi), contaram por meio de fusões cinematográficas histórias em que os personagens vivem em meio a uma fusão, e ainda, assim como tantas vezes o cinema se serve de um personagem que perdeu a memória para tomar a condição do espectador no instante da projeção como tema e como modo de narrar, assim também Steve McQueen se serve de uma figura cinematográfica, o fora de quadro, como história e como modo de contar a história, como ideia central, como estrutura de Shame.

Fora de quadro: na imagem cinematográfica, o que o espectador não vê também faz parte do quadro, e com frequência esta parte invisível da cena é, do ponto de vista dramático, mais  importante do que a porção visível no quadro. Em Shame, no filme inteiro, a verdadeira ação dramática, a rigor, não se mostra. A câmera, no recorte do espaço e do tempo que propõe, deliberadamente concentra sua atenção no que a clássica narrativa de cinema costuma deixar fora do campo visual para não perder de vista o que quer dizer. Para contar uma história de não-ditos, de paixões recalcadas, Shame mostra apenas que esconde a história de seus personagens. Desenquadra. Conta o avesso. Recorre ao fora de quadro como uma máscara, sombra, rastro que não somente remete ao reprimido, mas o revela como ele essencialmente é.

Um exemplo: a cena do jantar de Brandon com a colega de trabalho, Marianne. A conversa é interrompida a todo instante pela excessiva solicitude do garçom para apresentar o menu, os pratos especiais do dia e a carta de vinhos; para sugerir água mineral com gás ou indicar um vinho Pinot noir como o mais adequado e suave; para propor uma entrada antes do prato principal, para servir o vinho. A cena, para o espectador, tem ainda outras interrupções porque muita gente anda para lá e para cá no restaurante, bem na frente da câmera. O garçom, que se mexe muito e fala muito, atrapalha a conversa de Brandon e Marianne. As pessoas que se mexem no restaurante atrapalham a visão da cena. Quando, adiante, a câmera finalmente se livra de todo esse lado de fora que salta para dentro do quadro e consegue enquadrar os dois personagens, quando finalmente eles aparecem em destaque na tela, quando nada mais atrapalha a ação nem a visão da cena, o espectador, preparado pelo que veio antes, percebe o quanto a conversa é em si mesmo encoberta, o quanto o verdadeiro assunto permanece fora de quadro.

Esse instante do filme ilumina um outro, que surge adiante, e ao mesmo tempo é iluminado por ele. Em casa, Brandon conversa com a irmã, Sissy. Estão no sofá da sala. A câmera filma de perto, nada entre ela e os personagens, mas uma outra vez o enquadramento desenquadra a conversa. Os dois aparecem de costas e o rosto de Brandon quase não se vê. Enquanto se queixa da presença da irmã, ela apareceu sem ser esperada e desorganizou a vida dele, Brandon olha quase todo o tempo na direção do desenho animado fora de foco na televisão – o fora de foco que o espectador percebe é uma direta projeção do olhar perdido dele. Desse modo, o centro do quadro fora de foco, Brandon de costas, a cena é principalmente o rosto de Sissy, de perfil, olhos fixos no irmão. O enquadramento é especialmente significativo, pois acentua o que então se discute. Ela quer conversar com o irmão, quer entrar em quadro. Ele quer que ela desapareça, saia de cena, abandone o quadro. No fundo da cena, fora de foco mas no centro da imagem, o desenho animado na televisão desempenha um papel idêntico ao do garçom na conversa no restaurante – é um ruído para sugerir que também a parte definida da imagem, a conversa em primeiro plano, é um ruído. Em cena, um ruído sobre outro ruído. O duplo ruído empurra o sentido para fora de quadro.

Nessa sequência de ruídos que se atropelam uns aos outros, talvez o instante mais significativo, ainda mais central que as citadas conversas de Brandon com a colega de trabalho e com a irmã, é talvez menos que um ruído: a interpretação sussurrada como um grito para dentro de New York, New York.

Central porque embora pareça uma pausa, um entreato, um desvio, um modo de deslocar a narrativa para um acessório e perder-se do essencial, o jeito lento e triste da interpretação – o contracampo da canção feita para alegremente celebrar a cidade – a estranheza do canto, enfim, sublinha a estranheza da atmosfera de Shame. A canção sussurrada em quadro grita a presença de um fora de quadro. E também: central porque o princípio organizador dessa série de não-ditos em torno de Brandon, de seu interesse em pornografia, de seus seguidos encontros com prostitutas, remete o espectador à cidade em que ele vive – ou ele quer ser parte dela, como diz a canção, ou tudo nela quer ser parte dele.  Brandon não nasceu ali: vive ali, como vários outros personagens que atravessam a história (às vezes por um breve instante, como a garçonete paulista, como a mulher que sorri no metrô, como a mulher que sorri no bar). New York aparece então como uma terra estrangeira e ao mesmo tempo desejada. Não a terra mãe, nem apenas a cidade que realmente existe, mas o fora de quadro da cidade, o espaço de Brandon – e dos colegas de trabalho e os que passam no metrô e os que se reúnem no bar no fim de tarde – o espaço em que todos podem se refugiar numa espécie de fora de quadro de si mesmos.

Na primeira imagem, Brandon está em quadro como se estivesse fora dele. O plano é longo e fixo. A câmera lá no alto não se mexe.  Brandon, na cama ,com os olhos perdidos em algum ponto do teto, não se mexe. Na última imagem, Brandon entra em quadro. Chove. Ele está na rua, sozinho. Vem do fundo da imagem, caminha na direção da câmera, se deixa cair no chão e chora baixinho. Logo que entra em quadro, o filme termina, pois para compreender o que se enquadra em Shame é preciso, mais que em qualquer outro filme, manter os olhos no fora de quadro.

[Como uma espécie de post-scriptum, vale mencionar que, para o público brasileiro, esse filme que convida o espectador a compor a história apenas esboçada, que oculta ou pelo menos encobre a ação dramática para revelar como os personagens ocultam de si mesmos o drama que vivem, para o público brasileiro, o título desse filme traz uma (certamente não deliberada) indicação de seu modo de narrar: manter o original inglês, Shame, sem tradução, Vergonha, talvez ajude a perceber que tudo no filme de Steve McQueen conduz a atenção para o fora de quadro.]

 

 

José Carlos Avellar fala sobre Thomaz Farkas

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