Quem, como eu, acompanha o cinema brasileiro desde os anos sessenta, ultimamente tem sido golpeado com mais frequência do que seria razoável pela notícia da partida de companheiros desta jornada.
Foi com imensa tristeza que na manhã de 18 de março último recebi a notícia de que José Carlos Avellar havia nos deixado depois de longa batalha contra a doença que o afligia. O telefone soou no momento em que eu dava por encerrada a edição do documentário Improvável encontro e pensava que logo o poderia apresentar pronto ao Avellar. O projeto nasceu de uma conversa com ele e seu apoio foi essencial para que eu pudesse levar a ideia adiante. A conversa, mantida nos corredores do IMS, começou assim:
Eu (sondando o terreno): Zé, estou com uma ideia meio maluca para um documentário.
Avellar: As ideias malucas são as melhores…
Animado pela acolhida, expus meu projeto. Ele me ouviu, e percebendo que a dimensão do que eu pretendia estava além das suas possibilidades me sugeriu com sua delicadeza e generosidade habituais: “Porque não fazes um ensaio, um pequeno filme onde você possa testar a ideia? Isso eu consigo ajudar a viabilizar.” Seguimos conversando ali mesmo, sentados no banco do corredor, perscrutando caminhos e possibilidades. A certa altura, despretensiosamente, ele mencionou o nome do fotógrafo José Medeiros, apontando alguns aspectos da sua trajetória que vinham de encontro ao que eu buscava, e naquele momento o filme começou a se concretizar.
Depois desse dia seguiram-se outros encontros e novas conversas. Eu procurava mantê-lo informado do andamento e das mudanças que o projeto ia passando à medida que o trabalho avançava. Tomando café com leite, no meio da tarde, conversamos sobre cinema documentário, sobre cinema latino-americano. Ele me contava o que vira e sugeria o que eu deveria ver. Me falava de cinema com entusiasmo, desfiando sempre seu pensamento cheio de imaginação. Quando lhe contei, preocupado com prazos estipulados entre nós, que a edição do documentário levaria mais tempo do que o previsto, ele, tranquilo, me disse: “Cada filme tem o seu tempo. Faça no seu tempo”.
Improvável encontro foi totalmente realizado sobre fotografias de José Medeiros e Thomaz Farkas. Narra o encontro, a amizade e as influências recíprocas que contribuíram para a consolidação da moderna fotografia brasileira, inaugurada nas décadas de 1940/50. Durante a edição do documentário, seguimos – eu e o Zé – nos comunicando através de e-mails e telefonemas. No final do ano passado, recebi a noticia de que seu estado de saúde se agravara e que ele estava obrigado a ficar em casa para se tratar. Liguei e conversamos um pouco pelo telefone. Com tranquilidade me explicou o que estava acontecendo, descreveu o tratamento que tinha pela frente e agradeceu pelas notícias do projeto.
Em dezembro passado, com a montagem do projeto a meio caminho, liguei para saber como ele estava e se eu poderia visitá-lo. Queria levar a primeira montagem do filme para ele ver. Ele estava bem disposto e me disse “Claro, venha!” E assim lá fui eu para meu encontro com o Zé.
Recebeu-me com a simpatia de sempre, fragilizado pelo tratamento a que vinha sendo submetido, mas animado. Falou-me do que tinha pela frente, e dos planos de voltar ao Instituto em fevereiro. Assistiu ao primeiro corte do documentário, fez seus comentários e tive a oportunidade de mencionar as mudanças que ainda pretendia realizar. Depois a conversa seguiu em torno da fotografia e de alguns fotógrafos.
Sem que eu me desse conta, a tarde foi avançando, e seu ponto alto foi quando abordamos nossa admiração comum pelas câmeras Leica. Fui então premiado com um “tour” pela sua coleção de Leicas. Avellar, com entusiasmo juvenil, discorreu sobre os diferentes modelos da sua coleção, me apresentou a várias câmeras que eu desconhecia, falamos de corpos e lentes.
Contou-me em que circunstâncias havia adquirido algumas daquelas preciosidades. Das câmeras passamos a publicações sobre a Leica, adquiridas ao longo dos anos em diversas viagens, aproveitando intervalos nos inúmeros encontros e festivais de cinema de que participou. Sendo possuidor de apenas uma Leica, aquilo foi uma festa para os olhos. Acabei perdendo a noção do tempo e a visita se estendeu por mais tempo do que seria recomendável naquelas circunstâncias. Mas foi um fim de tarde daqueles para se lembrar. Lembrança que se junta a muitos outros momentos em que estivemos juntos através dos anos.
Nossos primeiros encontros se deram em meados dos anos sessenta, no balcão do laboratório 16mm que existia na Rua Alice, em Laranjeiras. Fazíamos, então, nossos primeiros filmes para o festival de cinema amador promovido pelo Jornal do Brasil. Nossa amizade começou ali, no interesse comum pela fotografia, e prosseguiu no Jornal do Brasil, onde ele já trabalhava como diagramador e onde me conseguiu um estágio no departamento de fotografia.
Daí em diante o cinema nos manteve ligados. Mais de uma vez fotografei filmes com sua câmera emprestada. Li suas criticas no JB e frequentei projeções e debates promovidos por ele e Cosme Alves Neto na cinemateca do MAM. Nestes quase 50 anos, estivemos próximos em diferentes projetos, e mais recentemente no IMS.
Queria muito que o filme que estou concluindo tivesse sido visto, e comentado, pelo Avellar. Infelizmente não ficou pronto a tempo, mas Improvável encontro é a ele dedicado.