A cidade que era uma vila

Fotografia

31.01.11

Os três mosteiros

A cidade de São Paulo de meados do século XIX era a mesma da época da independência, que era a mesma do século XVIII, que era bem parecida com a do século XVII. Resumia-se a uma vila instalada num planalto delimitado pelos vales do rio Tamanduateí e do pequeno, mas com profundo vale, rio Anhangabaú. E assim ficou por longo tempo sem se expandir. Seu núcleo inicial era um triângulo com mosteiros como vértices, o de São Bento, o de São Francisco e do Carmo, as construções de taipa construídas respeitando as curvas de nível com telhados que se prolongavam em quase alpendres, para que chuvas e enxurradas não dissolvessem as construções.

Naqueles tempos vivia-se uma contradição: ao mesmo tempo em que a vila era um lugar pobre e destinado a desaparecer com o tempo, sua população aumentava. Ninguém até hoje sabe os motivos, existem apenas suspeitas, uns acham que era por ser um entroncamento estratégico de caminhos, incluindo a possibilidade de ser porta de passagem entre a América portuguesa e a hispânica. Para os portugueses, era entreposto de entrada para ocupação do interior para além da linha de Tordesilhas. Para outros, era lugar de refúgio da metrópole de além-mar.

A vida na Vila de Piratininga, como era chamada, regia-se por si, provinciana, isolada e rebelde. Havia autonomia em relação à defesa, melhorias públicas, relacionamento com a população indígena, preços das mercadorias, administração eclesiástica, obras públicas e serviços municipais, independente da metrópole portuguesa. Notícia desse comportamento se deu durante um confronto entre paulistas e jesuítas em fins do século XVII, quando fez Roma mandar observadores ao local. Os jesuítas enviados redigiram um documento conhecido pelo título de Apologia pro paulistis, e ao analisar a questão, defenderam a tese de que os costumes dos paulistas prevaleciam sobre as leis editadas. Nas palavras dos autores: “os paulistas nunca estiveram obrigados pela lei e isso é condição sem a qual as leis não têm força nem substância”. A vila se desenvolveu pautada pelo direito natural.

O comportamento de desobediência civil dos paulistas talvez tenha inspirado Guilherme de Almeida e José Wasth Rodrigues em 1916, quando criaram, no concurso para o brasão de armas da cidade, a divisa: NON DUCOR DUCO (não sou conduzido, conduzo).

As cinco torres

Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), um ator carioca que havia se interessado e aprendido o ofício da fotografia, aqui chegou por volta de 1860 contratado pela Photographia Acadêmica, filial paulista do estabelecimento carioca de Joaquim Feliciano Alves Carneiro, onde Militão foi aprendiz. Chegando, provavelmente pelo caminho do Carmo, por onde vinham os que chegavam do Rio de Janeiro, deve ter avistado de longe as cinco torres no alto do planalto, a da igreja da Boa Morte, a do convento do Carmo, a do Recolhimento de Sta. Teresa e as das Igrejas da Sé e do Colégio, uma visão da cidade que podia ser apreciada de uma vez com um só golpe de vista.

A principal atividade de um fotógrafo, moda da época, era o retrato para a confecção dos famosos cartes-de-visite, cartões de visita com a fotografia das pessoas. Com Militão não foi diferente. Mas, exceção à regra, em 1862 o fotógrafo é atraído pela tosca cidade e realiza uma série de vistas da vila. Com minúcias de cartógrafo, acaba registrando quase todos os logradouros, largos e vistas a partir dos caminhos de entrada. Estas não foram as primeiras, mas foram as mais sinceras, não como as de viajantes que chegaram em busca de exotismo para mostrar ao velho mundo. Em 1875, assume o estabelecimento, agora Photographia Americana, prospera e, depois de 25 anos de atividade como retratista, tenta mudar de rumo, se dedicando apenas à venda de vistas de São Paulo e Santos.

Esta nova atividade não corresponde ao esperado, e Militão, mesmo sabendo do risco de fracasso, em 1887 realiza seu canto de cisne, a tomada de vistas dos mesmos pontos de 1862, mostrando as transformações sofridas pela cidade. Tal feito era raro, pois nas palavras do próprio: “que fotógrafo teria a pachorra de guardar clichês de 25 anos”?. Nasce assim o Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo, registro do início das transformações do período cafeeiro, da troca da taipa pelo tijolo, da cidade cortada pela ferrovia, da chegada dos primeiros imigrantes, da ocupação dos vales drenados e retificados, das chácaras loteadas e da definitiva ocupação dos arredores.

As três cidades

Nos anos 1930, a prefeitura adquiriu um lote de mais de mil negativos de vidro sobre São Paulo, sem identificação alguma. Em 1937, um fotógrafo assume a Sessão de Iconografia com o intuito de organizar e classificar este acervo. O lote de negativos fora realizado, coletado, reproduzido e passado para a prefeitura por Aurélio Becherini, o fotógrafo e organizador do acervo, Benedito Junqueira Duarte e o diretor do Departamento de Cultura, Mário de Andrade.

Becherini registrou São Paulo no início do século XX e fez uma extensa documentação das transformações da cidade. Pelo mesmo motivo, também colecionou imagens de outros fotógrafos, incluindo as vistas de Militão. Em 1914, na gestão de Washington Luís, Becherini toma as mesmas vistas dos mesmos pontos que Militão fizera 27 anos antes. Surge assim mais um Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo (1862-1887-1914), agora em três momentos, após as grandes transformações urbanas inspiradas pelas reformas feitas em Paris pelo Barão Haussmann.

O Instituto Moreira Salles conserva em seu acervo fotográfico, além do Álbum Comparativo da cidade de São Paulo, o mais extenso e significativo conjunto de fotografias originais de Militão datadas de 1862. Em 2004 estas imagens foram publicadas nos Cadernos de Fotografia Brasileira, edição comemorativa pelos 450 anos da cidade.

Veja abaixo galeria de imagens de Militão:

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