Tony Judt, escritor

serrote

02.02.11

Ainda que não seja exatamente recomendável como exercício de estilo, a morte, ou melhor, a perspectiva ou certeza de sua chegada iminente, costuma atuar de forma decisiva sobre a escrita. Penso em José Saramago determinado a botar o ponto final em A viagem do elefante (e depois ainda viriam Caim e o original inconcluso) ou em Roberto Bolaño produzindo como um louco, preocupado que era com o sustento dos filhos. Mas penso com mais interesse no historiador Tony Judt, que três meses antes de morrer (em 6 de agosto de 2010) concluiu o delicado The Memory Chalet, que sai este ano pela Objetiva.

Como Saramago e Bolaño, Judt também encheu-se de trabalho nos dois anos que se seguiram à descoberta da esclerose lateral amiotrófica, excruciante doença degenerativa que, para dizer pouco, faz o paciente prisioneiro de si mesmo: mente intacta, corpo inerte. Nesse período, escreveu um livro combativo sobre política (I’ll fares the land), deu uma conferência memorável sobre ele e ainda concedeu uma série de entrevistas – a mais impressionante delas a Charlie Rose.

Com duas exceções, todos os capítulos do livro foram publicados na medida em que iam sendo produzidos – por aqui, muitos foram traduzidos na Folha de S. Paulo e na piauí. Os primeiros a surgir, na New York Review of Books, causaram impacto mais humano do que intelectual. Noite, por exemplo, dava conta do sofrimento das madrugadas atravessadas com o raciocínio tinindo e o corpo progressivamente paralisado.  É talvez o mais diretamente relacionado à doença e, curiosamente, explica o método peculiar de elaboração de um livro que tanto pior é apreendido quanto visto como uma “coletânea” de pontas soltas, embora assim tenha começado, sob o estímulo do também historiador Timothy Garton Ash.

Judt anota, logo na nota de abertura, suas dúvidas em  considerar estes escritos como “textos”, uma vez que são, principalmente,  produto de um prodigioso exercício de memória. Imóvel como um personagem beckettiano, ele se contava histórias para sobreviver, tendo muitas vezes como “gatilho mnemônico” (a expressão é dele) um chalé suíço onde passava férias na infância. No dia seguinte, para tomar forma, as narrativas eram redigidas com seu assistente, Eugene Rusyn. A ressalva vale pela honestidade intelectual mas, se transformada em impedimento, seria mesmo um excesso de zelo. Ao organizá-los para o livro, Judt encontrou o fio que os unia e os dava sentido – o que acontece, aliás, com todo trabalho intelectual consequente. E neste fio está o que há de mais impressionante nestes textos.

Diante dos breves ensaios pessoais terminados,  Judt não reconheceu neles o intelectual combativo e o historiador rigoroso. “Lendo estes feuilletons me vejo atingido pelo homem que nunca me tornei”, afirma ele, voltando a uma dúvida juvenil entre a literatura e a história. “A literatura – a poesia em particular – teria me forçado a encontrar dentro de mim palavras e estilos pouco familiares com os quais descobriria uma certa afinidade. Dificilmente diria que lamento não ter seguido este caminho: meus hábitos intelectuais conservadores me serviram bem o suficiente. Mas eu ainda acho que algo se perdeu”.

Dos textos finais do historiador surgiu o escritor e, com ele, como o próprio Judt diz, uma qualidade “intuitiva” que de certa forma refinou o olhar crítico. Para ele o que interessa é “o êxito que tive em relatar e entrelaçar o público e o privado, o refletido e o intuído, o recordado e o sentido”. E neste ponto são magníficos os capítulos “Paris foi ontem” (que faz da temporada de um jovem inglês na École Normale Supérieure uma reflexão sobre o valor da formação intelectual e sua relação com a sociedade), “Garotas, garotas, garotas” (memória afetiva de seu casamento, da paranóia politicamente correta  e do conservadorismo comportamental de sua geração) e “Revolucionários” (uma interpretação original da herança sessentaeioitista).

Assim como Judt, Edward Said viveu com intensidade a proximidade da morte. Teve mais tempo, exatos dez anos desde o diagnóstico de leucemia. E deixou um livro inconcluso,  Estilo tardio, que foi publicado com edição de Michael Wood e ilumina extraordinariamente bem  The Memory Chalet. O título e a idéia principal vem de Theodor Adorno e sua análise de Beethoven. Para resumir, Said defende que, para um artista ou pensador, velhice e morte representam, nos casos mais interessantes, um corte radical em suas obras e carreiras. As obras produzidas sob pressão do fim  adquirem, segundo ele, um “novo idioma”.  É o racionalista que incorpora a subjetividade, o sóbrio que corteja o caos.

“Experimentar o tardio é estar no fim totalmente consciente, pleno de memória e também muito (e até sobrenaturalmente) consciente do presente”, escreve Said no que poderia ser uma definição de Judt. E lembra ainda que o estilo tardio não aceita “as cadências definitivas da morte”: é, antes, uma pequena rebelião em que a morte física aparece como uma ironia.

Nada que Tony Judt não possa exemplificar, ao se dizer um homem “de sorte”: “Pode-se achar que beira o mau gosto que um homem saudável, com uma família jovem, considere-se sortudo por ter sido nocauteado aos sessenta anos por uma desordem degenerativa incurável da qual ele irá morrer em breve. Mas há vários tipos de sorte (…) E se você tem que sofrer, melhor que tenha uma cabeça bem abastecida: cheia de pedaços de lembranças prestáveis, recicláveis e que podem ser usadas de várias formas, lembranças prontas para uma cabeça bem disposta à análise”.

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